Palavralgia

Mudei! Mas, pelo menos em essência, acho que continuo sendo eu mesma e, neste caso, não sei se dá para dizer “ainda bem”, pois acredito que a mudança também da essência, muitas vezes, pode ser essencial.

Toda mudança pressupõe o caos, processo pelo qual acabei de passar, não ilesa, é claro, porque o caos nunca passa incólume por coisa ou pessoa alguma, sempre deixa tudo de pernas para o ar. Em qualquer situação, estressa, cansa, deixa marcas, seja na alma ou no corpo. No meu caso, hematomas pelo carregamento de caixas e gavetas pesadas, além de alguns tombinhos da escada doméstica, por subir nela com a tralha toda na mão. Não dá para o caos passar por nós sem nos envolver parcial ou completamente.

Por falar em tralha, como a gente junta coisa que não serve!  Acho que aqui já podemos começar a encontrar alguns pontos positivos no meio do caos. Ele nos mostra o quanto nos cercamos, envolvemos e ocupamos com coisas sem a menor importância, ou seja, ele aponta direta e imediatamente para o que realmente é importante para nós, seja material, espiritual ou afetivo. Agora já começo a achar o caos necessário e até imprescindível.

Quanta coisa sem a menor utilidade me vi obrigada a descartar para não ter que levar “peso morto” para a nova moradia. Coisas empoeiradas, antigas, sem a menor serventia, mas que conservamos por pura conveniência. O caos é inconveniente, nos tira da zona de conforto, faz a maior “zona” em torno de nós e nos obriga, por razões diversas, a mudar de verdade.

O mundo é a nossa moradia, o caos nos cerca por toda parte impelindo-nos à mudança, muitas vezes, traumáticas, dolorosas, mas indispensáveis, porque é preciso mudar. Sempre implacável, caótico mesmo, o caos faz com que o evitemos, tentemos amenizá-lo, fujamos dele, mas ele sempre nos atinge de alguma forma. E, por mais incrível que isso possa parecer, ele sempre traz o seu lado positivo.

Depois de me desvencilhar de pilhas e pilhas de coisas que não serviam para mais nada e ainda ocupavam muito espaço na minha vida, comecei o serviço de embalagem dos pertences. Tarefa exaustiva, apesar da colaboração de valorosas ajudantes.

Nada ficou no lugar, tudo foi desacomodado, remexido, bagunçado, e algumas coisas quebradas, perdidas. Tem coisa que até agora não consegui encontrar, objetos estimados, de valor, não material, é claro, mas afetivo, que acho que foram absorvidos pelo caos e jamais me serão devolvidos. O caos nunca passa sem ocasionar perdas.

Machuquei-me. Além dos hematomas, me cortei com um caco de copo quebrado, fiquei nervosa, dei “piti”, me desequilibrei. Na tentativa de começar a colocar tudo no lugar, muitas coisas desabaram sobre mim.

Já na nova residência, curiosamente, descobri que eu havia trazido ainda muita quinquilharia. Nova empreitada de seleção e descarte de tudo que não cabe mais no meu novo mundo.

Agora tudo já começa a entrar no lugar, embora não tenha encontrado uma relíquia que guardava com muito zelo. Não adianta nada ser zeloso no meio do caos. Trata-se de um livro, Bola de Gude, de Leir Moraes, cuja leitura me foi passada como trabalho escolar em remotíssimos tempos, a qual me impressionou de tal maneira que o conservei até então. De alguma forma, o livro também fala de mudança, transformação e perdas. Coincidência ou não, ele está perdido e eu fiquei muito triste por isso.

As coisas já estão mais organizadas. O trapo agora aqui sou eu, que tive que tomar a frente de tudo na mudança. É claro que este fato não me passa despercebido. Sou eu que tenho que passar por isso, é minha responsabilidade. Contudo, apesar de estar me sentindo um trapo, como disse, sobrevivi para reorganizar a minha casa. Quantos não sobrevivem ao caos! Sou um trapo renovado, cheio de remendos, e também de energias novas, apesar do cansaço. Novos ares, nova atmosfera, novo ambiente, novas pessoas, jovens ou mais idosas, com as quais certamente aprenderei muitas coisas.  A palavra é essa: renovação, nova ação, nova atitude. Tudo isto está implícito, ou melhor, explícito, no processo de mudança e transformação. Esse é o lado positivo de que falava anteriormente.

Mudei. Mudei tudo de lugar, mudei de local, de residência, de ambiente. A sensação é um pouco de estranhamento no início. Meu mundo está diferente e isto me faz pensar em todas estas coisas que estão acontecendo e provocando profundas mudanças no Mundo, que é meu também. Agora é a fase de adaptação, aliás esta é uma das características mais louváveis do Ser Humano: a capacidade de se readaptar. 

Em essência, acabo por concluir, mudei também, porque nada se modifica externamente sem promover modificações no mundo íntimo. E o contrário também é verdadeiro. No fim das contas, é o nosso mundo interior que também precisa estar em constante processo de reforma, até para que a crise possa ser encarada como um sistema natural de renovação pelo qual todos nós devemos passar. Da próxima vez, a bagagem estará bem maior sob este aspecto e muito, mas muito menor no sentido literal de “bagagem”.

Próxima vez??? Tem uma coisa que me esqueci de mencionar a respeito do caos: de surpresa ou não, ele sempre retorna às nossas vidas, não uma ou duas, mas várias vezes, por isso é preciso se preparar e encarar.

O saldo final, em qualquer experiência, será sempre o aprendizado.
Palavralgia
Trecho da carta enviada por Fernando Pessoa ao seu amigo Casais Monteiro (13-1-1935)

"…Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos.) Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida-real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar... Num dia em que finalmente desistira - foi em 8 de Março de 1914 - acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. (...) E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir - instintiva e subconscientemente - uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nesta altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num acto, e à máquina de escrever, sem interrupção, nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro Campos - a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem."

Por conta da minha mudança de residência, ainda não tive tempo de conferir "Plural como o Universo" no Centro Cultural Correios do Rio de Janeiro. A exposição mostra as facetas do poeta português, Fernando Pessoa, que foi capaz de inventar e se reinventar por meio de diversos personagens fictícios ao longo de seus 47 anos de vida. Mas ainda dá tempo, a exposição fica no Centro Cultural até 22 de maio e o endereço é Rua Visconde de Itaboraí, 20 - Centro, pertinho da Candelária. Dá para perder?
Palavralgia
Ainda estou sob as influências do livro A Chave de Casa, da autora portuguesa radicada no Brasil, Tatiana Salem Levy. É impossível parar de ler, pois o texto forte e bem construído prende muito a atenção e conduz, através de inúmeros recortes, a várias histórias, que a autora vai costurando para construir uma narrativa que combina elementos autobiográficos e de ficção. A obra venceu o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria estreante e foi finalista do Prêmio Jabuti. Recomendo a leitura.