Palavralgia


Para exercitar os neurônios, aprenda poesia.

Por considerar super procedente o conteúdo da entrevista que o historiador Leandro Karnal concedeu à CNN, reproduzo trecho em que o professor dá dicas sobre literatura. Quem desejar, assista à entrevista em sua totalidade no canal da CNN no YouTube. Vale muito a pena.
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A partir de uma realidade pessoal, o texto Bombardeio se conecta a vários temas da atualidade relacionados a obstáculos, individuais e coletivos, que precisam ser transpostos com vistas ao alcance de um nível de consciência mais ampliado.
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"It must have been love but it’s over now". Esta foi a trilha sonora enquanto estava ao volante hoje pela manhã. Fiquei com o “chicletinho” grudado. Durante todo o percurso, a musiquinha rescindia, sem consentimento prévio, em meu pensamento. Quando percebia, lá estava eu... "it must have been love ..."

Isso demonstra o pouquíssimo controle que detemos sobre o próprio pensamento.

A insistência da música, independente da minha vontade, me fez recordar de um amor da adolescência, um amor platônico, marcante que, now is over (muuuuito over), mas que foi amor, como o que diz a música da dupla sueca Roxette.

O “chicletinho”, de alguma forma, mexeu comigo. Não por conta de um saudosismo romântico, mas por deslocar de alguma profundeza recôndita um sentimento submerso e trazê-lo à tona. Esta lembrança apresenta-se encharcada, líquida, como tudo a nossa volta. Aquele amor importante da adolescência, há muito diluído como uma gota de tinta que cai num balde d’água, teve a sua concretude, o seu momento. Da mesma forma, o Império Romano, com toda a sua força conquistadora, também os faraós do antigo Egito, autoproclamados deuses vivos, e assim todas as coisas. Tudo tem a sua glória, sua importância, para depois se diluir.

Setenta e um por cento da superfície do nosso planeta é coberta de água. O corpo humano é fluido com sessenta e cinco por cento de líquido. Muitas vezes estamos literalmente mergulhados no alto índice de umidade do ar. A nossa fluidez é muito mais concreta que a concretude da nossa existência. Nós somos líquidos, vivemos num meio fluido e nele nos diluímos.

Nada é permanente. De alguma maneira, esta máxima, chega a ser consoladora, principalmente quando relacionada à realidade política e econômica em que vivemos.

Tudo escorre por entre os dedos, mesmo quando temos a certeza de segurarmos algo com firmeza nas mãos.

Eu me pergunto o que restou daquela paixão nem tão pueril assim. E a resposta é: a memória, mas só, quando algum dispositivo, como esta música, a aciona. Contudo, a lembrança guarda um grande distanciamento daquilo que foi vivido. Até a memória vem dispersada, dissolvida, fragmentada, como respingos e o sentimento que ela traz é completamente diferente daquele da experiência vivida. Enquanto estamos conectados a todos os meandros, detalhes, nuanças e tonalidades dos tecidos da história, tudo tem uma coloração. Quando nos voltam à memória, muitas vezes, as cores estão diferentes, por vezes esvanecidas. O distanciamento do que nos parecia concreto dissipa esta concretude e nos traz amadurecimento, como o de uma manga amarelinha que despenca lá dos píncaros da árvore para cumprir o seu destino na dura realidade do chão.

Em vez de um Super-Homem, talvez alguma super entidade das águas possa nos restituir a glória, mas isso somente é possível na memória, que tem sua natureza fluida. Ao ser tocada, contamina, molha tudo em volta, mas depois evapora. Esbarrar numa lembrança é como molhar os pés numa fina lâmina de água e ter acesso a tudo que ali está contido, como o que acontece com a personagem Eleven da série Stranger Things.

Enquanto estamos vivendo a situação, tudo nos parece tão imprescindível, tão insubstituível, tão vital, ainda mais quando se trata de paixão. Mas quando passa, muitas vezes não queremos nem lembrar, frequentemente nos achamos até ridículos. Por outro lado, tem gente que nunca supera. Imagina, se não conseguimos controlar nem uma musiquinha que insiste em povoar nosso pensamento, quanto mais dominar um sentimento tão forte. Outros, no entanto, passam por uma, duas, muitas paixões e seguem o fluxo, diluindo estas situações no tempo, enquanto armazenam seus resíduos em alguma caixinha pouco acessada da lembrança.

Não apenas o curso da história se modifica, nós também nos transformamos. E, num dia qualquer, alguma coisa esbarra sem querer na caixinha há muito esquecida – uma musiquinha chiclete, por exemplo – fazendo com que seu conteúdo se derrame e impregne todo o ambiente mental com aquele perfume antigo e ultrapassado, para depois evaporar no ar, mas não sem antes acordar sentimentos e sensações adormecidos, que fazem o coração disparar.

Num primeiro momento, são os sentimentos que despertam fazendo com que fiquemos inebriados, suspensos, descolados da realidade atual. Em seguida, vem a profunda reflexão de como tudo passou, como um rio, são águas passadas. Por último, restam uns destroços boiando em torno de nós durante todo o dia. De vez em quando, trombamos com alguns deles, o que nos dá a sensação de estarmos com um pé no passado e outro no presente. Mas até a renitente música “chicletinho” que impera absoluta em nosso pensamento por longos momentos, como um imponente faraó, vai escorrendo, se esvaindo... e o ritmo continua... "It must have been good but I lost it somehow... It’s where the water flows..." até evaporar completamente.

Texto escrito em algum dia de 2018