Palavralgia
Cada um tem uma verdade, inventada e institucionalizada por si próprio.
Nós construímos, vestimos, comemos, respiramos a verdade. Trabalhamos, dormimos, acordamos e casamos com ela, fazemos ela crescer. Todos os nossos pensamentos, desejos, ações e atitudes estão fortemente embasados na nossa verdade.
Acreditamos firmemente estar a nossa existência seguramente calcada nesta verdade que incorporamos e, investidos de todo o poder que a verdade nos confere, falamos alto, gritamos, esbravejamos, batemos no peito.
Bilhões e bilhões de pessoas constituem a população mundial e, assim como eu construo a minha verdade, cada um edifica a sua.
Afinal, com quem está a verdade?
Acontece que existe um dispositivo especializado em detonar verdades individuais com precisão. Este dispositivo foi caprichosamente denominado de adversidade. A adversidade normalmente se apresenta quando nos deparamos com outras verdades.
Diante da adversidade, o nosso edifício rui e novas verdades se apresentam. Percebemos que já não vestimos aquela verdade, que ela arrumou outro e foi embora, que já fomos despedidos sem despedida etc.
O caleidoscópio gira e observamos, por outra lente, que aquela verdade, aquilo que acreditávamos ser, chocou-se com as verdades com que as outras pessoas se vestem e revestem.
Tem gente que morre achando que é tudo verdade!
Já que teimamos em criar uma verdade, é bom construirmos verdades flexíveis, porque as rígidas demais são as que se partem com maior facilidade e quanto maior o tamanho da nossa verdade, maiores os estragos em seu desmoronamento. É duro ver tudo em que acreditávamos ardentemente cair por terra completamente. Mais duro ainda é, de uma hora para outra, tentar caber numa nova verdade e ter que viver de meias verdades ou, na falta da nossa própria, nos apropriarmos da verdade alheia.
A bem da verdade, temos que admitir que ela é uma só e que ninguém tem seu certificado de propriedade.
Então, o melhor mesmo é assumirmos de vez que, definitivamente, não somos donos da verdade. 
Palavralgia
Comecei uma nova dieta. Este foi o motivo da minha entrada numa loja de departamentos, quando passeava no shopping. Lembrei de que precisava comprar barras de cereais.

De súbito, bem no meio da loja, enquanto procurava as inocentes barrinhas, fui avassaladoramente capturada por um cheiro. Um cheiro marcante que fez meu coração disparar e quase sair pela boca. Parei no meio da loja para ver de onde vinha aquele cheiro de borracha nova que há muito, muito tempo eu não sentia.

De repente, me peguei com o nariz pregado no pneu da bicicleta que estava exposta numa prateleira suspensa. Cena que, aos olhos de quem visse, poderia situar-se na linha que divide o estranho do hilário e eu ali, de olhos bem fechados me esticando toda para encostar as narinas no pneu da bicicleta, enquanto tudo desaparecia à minha volta: prateleiras, barrinhas de cereais, pessoas. Enfim, a loja toda desapareceu para dar lugar a outro cenário.

Surpreendentemente, me vi numa festa de Natal que, na linha do meu tempo, não sei precisar quando exatamente aconteceu, mas eu estava lá e podia ver e tocar a árvore de Natal e os presentes à sua volta, as pessoas, o ambiente, a decoração simples, a mesa com a modesta ceia; podia ouvir o barulho do lugar e sentir aquele cheiro que ficou guardado num cantinho do meu ser e que, quando menos esperava, me deu, com tanta realidade, acesso a tudo aquilo de novo.

Foi um dos mais importantes Natais da minha vida, porque ganhei o objeto de desejo de quase toda criança daquela época: uma bicicleta.

Como é incrível que a memória olfativa possa nos transportar no tempo e no espaço desta forma. Quando vi, eu estava ali, menina fascinada diante da bicicleta nova e aquele cheiro a entrar pelas narinas e a preencher toda a atmosfera.

Ali, descobri que a felicidade para mim tem cheiro, cheiro de bicicleta e também tem outro nome; a felicidade se chama bicicleta, simples assim. Sobre duas rodas, ao comando de pedais e freios, pode nos levar por todos os caminhos para conquista de um mundo inteiro. Um mundo que é só nosso, todinho cuidadosamente construído de momentos como aquele meu Natal e como a experiência com a primeira bicicleta, que nos ensina, desde cedo, a nos esforçarmos ladeira acima e a nos comedirmos ladeira abaixo, para não nos machucarmos, embora isso seja inevitável. E nos ensina, ainda, a soltarmos o freio quando é preciso avançar e a desviarmos dos obstáculos dos caminhos. O bom manuseio de pedais e freios é um grande aprendizado para a vida toda.

Um cheiro, um som, uma música pode nos transportar no tempo e nos fazer encontrar novamente conosco mesmos em outras circunstâncias. Assim, testemunhando as nossas próprias experiências, vemos o quanto aquela situação foi importante para a construção do nosso “eu”, do que somos e das coisas com que realmente nos importamos.

Abri os olhos, a felicidade continuava lá, no mesmo lugar, suspensa na prateleira, exalando o seu inebriante cheiro. À minha volta, pessoas circulavam pelos estreitos corredores da loja, sem se darem conta.

Hoje, a gente a procura tanto em tantas coisas, em tantos lugares, complica e não encontra. Aquele cheiro no meio da loja me transportou, me fez reviver tudo aquilo novamente e ver como é tão simples ser feliz.

Para que barrinhas de cereais e tudo mais se eu estava plena? Não precisava de mais nada. Deixei tudo para trás e voltei para casa. Queria apenas fazer aquele momento perdurar.