Palavralgia
















É preciso usar túnica especial
Para adentrar o mundo dos poetas.

Quem não estiver devidamente trajado
Representará ultraje à atmosfera poética.

Esta a razão pela qual o poeta
Afirma-se como fingidor,
Aquele que se veste
Reveste, traveste e fantasia.

Sem esta vestimenta,
Não se poderia
Desnudar a poesia.

Palavralgia
A convivência nem sempre, ou melhor, quase nunca é pacífica.

Às vezes, a menina que sou quer se manifestar além do que a parcela em mim a ela destinada permite. Isso causa certa distonia, certo desacerto. É preciso, então, que a minha porção quase (eu disse quase) cinquentenária interfira para evitar o descompasso.

Explico (se é que isso pode ser explicado): sou uma menina de dezessete anos no corpo de uma mulher de cinquenta (quase, insisto). Embora esta relação, como mencionei, seja um tanto quanto conflituosa – e isso, aliás, é muito compreensível, já que há uma disparidade de interesses, pensamentos, aspirações, mentalidade e tudo mais – existe uma sintonia fina que tempera a relação fazendo com que idades e disparidades complementem-se criando nova realidade.

Sim, a coexistência de duas porções mulher numa mesma alma feminina acaba por fazer com que elas se complementem, dando origem a uma terceira mulher ainda em construção, mas que não carrega o peso de meio século nas costas sozinha. Divide-o em duas porções, pois nutre a alegria e a esperança da juventude e a maturidade e experiência da mulher que, há muito, deixou a balzaquiana para trás.

“Esta porção mulher que até então se resguardava é a melhor porção que trago em mim agora”, porque carrega em si a leveza da menina de dezessete que sou e a vivência e todas as mazelas inerentes à porção quase cinquentona.

A porção cinquenta já cumpriu o circuito pelo qual a dezessete, inevitavelmente, terá de passar, colhendo as perfumadas flores e deparando-se com todas as pedras e pedregulhos inerentes ao percurso.

Esta terceira mulher em fase de construção, muito longe ainda dos acabamentos, é o produto não final, é claro, da fusão destas duas porções que se contrabalançam, sem nunca deixarem de coexistir.

Conflitos sempre existirão. Muitas vezes, a menina de dezessete quer se vestir de forma alegre e despojada mas, ao se olhar no espelho, depara-se com a mulher de meio século para censurar e dizer, com todas as letras, o quanto estou ridícula. A menina tenta barganhar, desce bem a saia, para achar um contraponto, mas a mulher madura é radical: “vestido, só um pouquinho acima do joelho. No meio da coxa, não rola!”. E por aí vai. Nada contra quem usa e gosta. Sem preconceitos, por favor. Esta é uma questão pessoal.

Se no meio de uma festa tocar “eu sou uma fera de pele macia, cuidado garoto eu sou perigosa”, a menina fica frenética e ultrapassa todos os limites na pista de dança. Isso, é claro, arrastando a porção cinqüenta consigo.

Depois ela quer comer todos os docinhos, mas a quase cinquentona refreia permitindo apenas um brigadeiro.

Eu disse que a convivência não era nada pacífica. Elas discutem muito. Cada uma tem que ceder um pouquinho. Na praia, não tem discussão: é maiô e ponto.

Se deixar, a menina sobe no salto agulha, abusa da transparência e do decote e deixa a cinquentona mancando por uma semana. Já a porção madura quer descer do salto, celebrar os ganhos, sem fingir que não houve perdas.

Quem sou eu? Eu mesma me pergunto. Eu diria que sou a menina de dezessete lutando ativamente para que a mulher de quase cinquenta se transforme nessa terceira pessoa (do) singular: Ela.

Ela, cheia de distonias e desacertos. Ela, que continuará se construindo e reconstruindo. Ela, cheia de dúvidas e incertezas. Ela, que sempre cultivará a alegria e o bom humor. Ela, que acredita na vida. Ela, que alimenta o bom senso. Ela, que jamais, seja em que tempo for, deixará de ser menina.

(Imagem do quadro de Gilberto Salvador "O VÔO DA PORÇÃO MULHER" - têmpera vinílica e acrílico s/ tela 0,80m X 1,00m)