Palavralgia
O tempo entrou em mim,
Permaneceu por um tempo,
Fez brincadeiras e estripulias,
Depois partiu meio que chegando,
Meio que chegando ao fim.

O tempo entrou em mim pelo avesso,
Permaneceu longo tempo,
Fez brincadeiras e estripulias.
Chegou meio que partindo,
Quebrando, estilhaçando, despedaçando...
Transformando em um novo começo.
Palavralgia
















É preciso usar túnica especial
Para adentrar o mundo dos poetas.

Quem não estiver devidamente trajado
Representará ultraje à atmosfera poética.

Esta a razão pela qual o poeta
Afirma-se como fingidor,
Aquele que se veste
Reveste, traveste e fantasia.

Sem esta vestimenta,
Não se poderia
Desnudar a poesia.

Palavralgia
A convivência nem sempre, ou melhor, quase nunca é pacífica.

Às vezes, a menina que sou quer se manifestar além do que a parcela em mim a ela destinada permite. Isso causa certa distonia, certo desacerto. É preciso, então, que a minha porção quase (eu disse quase) cinquentenária interfira para evitar o descompasso.

Explico (se é que isso pode ser explicado): sou uma menina de dezessete anos no corpo de uma mulher de cinquenta (quase, insisto). Embora esta relação, como mencionei, seja um tanto quanto conflituosa – e isso, aliás, é muito compreensível, já que há uma disparidade de interesses, pensamentos, aspirações, mentalidade e tudo mais – existe uma sintonia fina que tempera a relação fazendo com que idades e disparidades complementem-se criando nova realidade.

Sim, a coexistência de duas porções mulher numa mesma alma feminina acaba por fazer com que elas se complementem, dando origem a uma terceira mulher ainda em construção, mas que não carrega o peso de meio século nas costas sozinha. Divide-o em duas porções, pois nutre a alegria e a esperança da juventude e a maturidade e experiência da mulher que, há muito, deixou a balzaquiana para trás.

“Esta porção mulher que até então se resguardava é a melhor porção que trago em mim agora”, porque carrega em si a leveza da menina de dezessete que sou e a vivência e todas as mazelas inerentes à porção quase cinquentona.

A porção cinquenta já cumpriu o circuito pelo qual a dezessete, inevitavelmente, terá de passar, colhendo as perfumadas flores e deparando-se com todas as pedras e pedregulhos inerentes ao percurso.

Esta terceira mulher em fase de construção, muito longe ainda dos acabamentos, é o produto não final, é claro, da fusão destas duas porções que se contrabalançam, sem nunca deixarem de coexistir.

Conflitos sempre existirão. Muitas vezes, a menina de dezessete quer se vestir de forma alegre e despojada mas, ao se olhar no espelho, depara-se com a mulher de meio século para censurar e dizer, com todas as letras, o quanto estou ridícula. A menina tenta barganhar, desce bem a saia, para achar um contraponto, mas a mulher madura é radical: “vestido, só um pouquinho acima do joelho. No meio da coxa, não rola!”. E por aí vai. Nada contra quem usa e gosta. Sem preconceitos, por favor. Esta é uma questão pessoal.

Se no meio de uma festa tocar “eu sou uma fera de pele macia, cuidado garoto eu sou perigosa”, a menina fica frenética e ultrapassa todos os limites na pista de dança. Isso, é claro, arrastando a porção cinqüenta consigo.

Depois ela quer comer todos os docinhos, mas a quase cinquentona refreia permitindo apenas um brigadeiro.

Eu disse que a convivência não era nada pacífica. Elas discutem muito. Cada uma tem que ceder um pouquinho. Na praia, não tem discussão: é maiô e ponto.

Se deixar, a menina sobe no salto agulha, abusa da transparência e do decote e deixa a cinquentona mancando por uma semana. Já a porção madura quer descer do salto, celebrar os ganhos, sem fingir que não houve perdas.

Quem sou eu? Eu mesma me pergunto. Eu diria que sou a menina de dezessete lutando ativamente para que a mulher de quase cinquenta se transforme nessa terceira pessoa (do) singular: Ela.

Ela, cheia de distonias e desacertos. Ela, que continuará se construindo e reconstruindo. Ela, cheia de dúvidas e incertezas. Ela, que sempre cultivará a alegria e o bom humor. Ela, que acredita na vida. Ela, que alimenta o bom senso. Ela, que jamais, seja em que tempo for, deixará de ser menina.

(Imagem do quadro de Gilberto Salvador "O VÔO DA PORÇÃO MULHER" - têmpera vinílica e acrílico s/ tela 0,80m X 1,00m)
Palavralgia
Eu já estive aqui, mas não trouxe a minha alma. Hoje ela veio comigo, por isso consigo enxergar através das paredes, dos objetos e das pessoas. Talvez por essa razão, tudo me pareça tão diferente. O caminhar vazio esvazia os caminhos de significados. Portanto, é imprescindível buscar a alma onde quer que ela esteja. Por mais árdua que seja esta busca, é preciso trazê-la de volta e não deixá-la mais escapar. Tudo que se faz com alma é sempre melhor. O que se vê são milhões de corpos andando vazios, carentes de espírito. É necessário promover o encontro de corpo e alma, a fim de que seja possível almejar atingir o verdadeiro sentido da vida.
Palavralgia
Escolhi o vocábulo
Melancolia para dissecar.
Cortei um primeiro pedaço e
Encontrei mel,
Prossegui o intento e
Descobri lia, pretérito imperfeito
Do verbo ler e
Come, de comer.
Continuei retalhando e
Misturando os pedaços,
Achei alia, de aliar;
Mela, de melar;
Cola, de colar;
Ame, de amar
E também ela, eco, ema, lema.
Neste processo, avistei além.
Vendo além, compreendi
Que um corte na melancolia
Pode desvelar muitas possibilidades.
Prosseguindo o exercício,
Decerto seja possível
Encontrar ainda muitas novidades.
Palavralgia
Nunca serei grande,
Bem sei.
Tão pouco pequena em demasia.
Serei sempre,
Isso sim,
Do tamanho exato
Para caber em mim.
Palavralgia
Neste processo arqueológico de autoescavação em que me encontro, tenho feito muitas descobertas importantes. Estar aqui no meio da arena é também para me despir de toda bondade. Assim, ando sob o sol, o suor me lava a alma.

Tudo vai clareando e, de repente, é como se estivéssemos diante de uma pintura, de um quadro que vamos pintando com as tintas do pensamento. Coisas simples, mas marcantes, saem das gavetinhas da nossa mente, em que estão devidamente acondicionadas, para nos assaltar e nos trazer lembranças, pedacinhos da matéria de que a vida é feita.

Vivo de delícias escaldantes, destas que o destino vai tecendo para que as coisas aconteçam exatamente da maneira que tem de ser. É para que haja encontros, mesmo que esteja tudo desencontrado.

O que ainda há de ser descoberto pelos mares por que navego? O mar está de ressaca.

Eu tenho muitas lembranças e os insetos sempre fizeram parte da minha vida. Vou morar muito tempo entre os tecidos que faço, fiando a vida com muitos braços.

De longe, tudo parece igual.

Minha avó não matava as aranhas. Estas se valiam do fato de que ela enxergava pouco e, espertas, fugiam rapidamente com o auxílio que a natureza aracnídea lhes dotara de ter muitas pernas. Depois voltavam para fiar sua vida novamente.

Quando crescer, quero ser igual as aranhas e fazer várias façanhas com muitos braços a trabalhar. Esta é uma felicidade rasa, que chega até os calcanhares.

Foi assim que empreguei meus braços numa fábrica de fantasias. O azul sempre me conduz pelas estradas da vida. Os degraus da calçada permitem que a rua me alcance e me leve, leve por entre as cores e dores dos caminhos.

Por que não caminhar?

Os caminhos também se encontram, como as águas. Quero que os caminhos me levem com meus braços de aranha a fabricar fantasias. Fantasias finas, leves, esvoaçantes, com as quais eu possa envolver quem quer que caia em minha teia de aracnídea que sai das entranhas da escavação. E foge das águas que podem lavar os sonhos, as fantasias e os caminhos, nestes tem que ter pó. Poeira de lembranças esquecidas. Fuligem no ar.

Tudo vai nublando e, de repente, é como se estivéssemos diante de um quadro empoeirado, sem cor, sem fantasia, envelhecido, onde a aranha consegue fiar sua vida com muito sossego.

Eu tenho muitas lembranças. Hoje estive chorando. Esta água não deu para lavar toda a fuligem do ar. O mar virou sertão. A fábrica me mandou embora.

Os caminhos também se desencontram, como as águas.

As aranhas precisam ter cuidado com quem usa óculos e eu preciso me despir de toda maldade.

De perto, tudo é bem diferente.

Para que a rua possa me trazer de volta em segurança, preciso alcançar os degraus da calçada.

Quando crescer, quero ser igual as aranhas, com muitos braços e muitas pernas que se confundem, para montar a minha própria fábrica de fantasias.
Palavralgia
Parada no sinal vermelho, observo uma movimentação diferente entre os carros. Eram meninas adolescentes, de classe média, pintadas dos pés à cabeça com tintas coloridas. Provavelmente estavam cumprindo algum tipo de trote de início na universidade.

Minha filha também passou por isso. Lembro bem que, em sua primeira semana, só podia circular nas dependências da faculdade se estivesse carregando um balde de lavar roupas.

As adolescentes pintadas que andavam entre os carros, não. Estas carregavam sacolas de plástico, dessas de supermercado, onde depositavam os trocados que recolhiam dos veículos.

Todos os motoristas, homens e mulheres, abriram suas janelas e contribuíram alegremente com a brincadeira das meninas. Todas bonitinhas, graciosas, sorridentes e lambrecadas de tinta. Pude notar que as sacolas, em que carregavam os donativos dos motoristas, estavam pesadas e havia até nota de cinco reais, como verifiquei pela transparência do saco da bela mocinha que me abordou.

Será que estas jovens têm algum quê de não sei quê?

A mais ou menos um quilômetro dali, novo sinal fechado. Mais adolescentes pintados dos pés à cabeça. Agora, não circulavam entre os automóveis com sacos plásticos cheios de moedas. Em vez disso, subiam nos ombros uns dos outros em forma de pirâmide na frente dos veículos. O que ficava no cume, fazia malabarismo com limões. De repente, saltavam ao chão com as mãos vazias estendidas. Desta vez, contudo, ninguém abriu a janela, ninguém sorriu, ninguém contribuiu e eles voltaram, sem moedas, com visível cansaço estampado no rosto, às suas posições, esperando o sinal fechar novamente para continuar seu malabarismo por uma mísera moedinha.

Por que doamos a quem não carece e fechamos a janela e a cara para quem realmente precisa?

Muitos podem dizer que não doam porque eles vão se drogar. Outros podem argumentar que não abrem a janela com medo de serem assaltados.

Um grupo pede porque não tem; e talvez até precise mais de um olhar, de uma palavra, de afeto do que de moeda. É para estes que doamos o nosso desprezo.

Faça esta experiência. Eu já fiz várias vezes e é impressionante o resultado. Tente abrir a janela e sorrir. Preste atenção no semblante de seja lá quem for que esteja à sua janela. Perceba como é importante para ele se sentir olhado.

O que será que lhes falta além de tudo? O principal é a dignidade. O pior não é pedir e ninguém dar, mas ficar exposto àquela situação humilhante e indigna, muitas vezes para obter apenas um pedaço de pão. Ou alguém acha que aqui não existe fome?

O outro grupo pede por causa de um trote, uma brincadeira para fazer uma chopada na faculdade.

Por que evitamos o que é grave e aderimos muito mais facilmente ao que é brincadeira? A vida não é uma brincadeira, embora as brincadeiras façam parte da vida e a tornem muito mais leve. Se é inevitável que nos deparemos com certas circunstâncias em cada curva da vida, por que fechar a janela e seguir adiante como se não fossemos encontrar com ela novamente na outra esquina?

O intuito não é pôr em discussão ou criticar quem doa ou não, ou o destino que cada grupo dará ao dinheiro, mas entender a nossa visão, a nossa atitude, o nosso comportamento diante de situações como estas.

Por que tratamos os iguais de forma diferente?

Agora sou eu quem está no topo da pirâmide, sem habilidade nenhuma e tentando me equilibrar. De repente, salto ao chão e fico diante dos dois grupos de adolescentes. De mim mesma, o que tenho a oferecer?

Como tornar os iguais mais iguais?

Existem os quês de não sei quê, mas há também os por quês. É com estes que tenho me ocupado cada vez mais.

Eu só queria entender!

Palavralgia
Quero viver
Para me despedaçar,
Me repartir até onde alcançar,
Me multiplicar,
E quando achar que já me
Quebrei o suficiente,
Desfaço-me em mais
Infinitos fragmentos
Para me doar por completo
E talvez assim,
Conseguir me sentir inteira.
Palavralgia
Preciso desse tempo para poesia,
Senão o absurdo aconteceria
E eu simplesmente "desenlouqueceria"
E a vida? A vida...
Sem cor, sem fantasia,
Tristemente desbotaria.
Palavralgia
Isso aí mesmo,
Seja lá o que for.
Talvez até um pouco mais.
Sei lá.
O que você quiser.
Porém, primeiramente,
E, acima de tudo,
Sou uma mulher.
Isso sim, e a natureza
Fornece atestado.
Tudo bem, tudo bem,
Cheia de imperfeições,
Erros, defeitos, etc. etc.
Mas, sobretudo,
Uma mulher
Que sabe muito
Bem o que quer.

Palavralgia
Sou um ser cheio de questionamentos
E contrários direcionamentos.
Por isso me derramo sobre a folha em branco,
Como quem se esparrama no divã.
Aqui é o espaço de me expor,
Me desmancho toda em palavras
sem jamais querer me recompor.
Palavralgia
Há tantas maneiras de se interpretar árvore, quantas há de senti-la. 

A árvore pode parecer um ser estranho com suas raízes a rasgarem o solo serpenteando em busca de alimento e sustentação, num movimento constante, mas imperceptível aos olhos.

Raízes lhe propiciam firmeza e segurança, qual alicerce fincado nas profundezas do chão, semelhando-se a minúsculas sondas que vão se enrobustecendo, de tal forma, que acabam por se transformarem, elas próprias, em cópia soterrada do vegetal aéreo que sustentam. 

A versão subterrânea do vegetal trabalha escondida, retirando do solo resistência e subsistência às adversidades dos tempos que, dependendo da intensidade, podem abalar as estruturas da árvore e tombá-la ao chão. 

As seivas, que lhe sustentam a existência, são conduzidas por caules e troncos a erigirem-se qual escultura esculpida pelas próprias necessidades de ar, luz e direção. 

Galhos e folhas estendem-se pelos ares como infinitos braços abertos a oferecerem seus frutos doces, azedos, amargos e até venenosos, conforme a natureza do vegetal.

Mas é a conjunção de todos os aspectos, que totaliza a particularidade do ser. 

Horizontalmente limitada, caminhos, trilhas e atalhos passam pela árvore, já que ela não pode passar pelos atalhos, trilhas e caminhos. Mas isso leva tempo, tempo de árvore com raízes profundas, pois, à medida que sua parte aparente se faz, também vai se construindo a parte recôndita das profundezas do ser. 

Impedida nesses trajetos, descobre outras direções e nelas se lança até onde consegue alcançar, embora, muitas vezes, de forma sinuosa e contorcida. 

No solo se fixa, mas seu objetivo está muito além. Na superfície do chão, uma árvore parece ser sempre apenas uma árvore. 

Além da árvore, mas intrinsecamente ligados a ela, há o florescer, o frutificar, o viver, mas também o murchar e o morrer e, ainda, há a sombra. 

Que interpretações podem-se dar à sombra, tão intimamente ligada à natureza do ser? 

O fruto e a semente podem ser sua concretização e continuação, porém o seu real projeto é a sombra. 

Então é possível fazer várias leituras de uma árvore. Nesta breve análise, apenas algumas são propostas: uma aparente, que floresce e frutifica; uma escondida, que trabalha, incessantemente, para que a dimensão que floresce e frutifica possa aparecer; e outra etérea, que imita a forma da sua dimensão aparente, mudando constantemente de posição e nuances, de acordo com a ocasião. 

O lado sombra só existe por causa da dimensão do ser enterrada nas profundezas. 

A própria árvore sugere seu projeto sombra como abrigo, mas outras projeções também podem ser aceitas. 

Inumeráveis outros aspectos podem ainda ser encontrados. Não importa a interpretação, o mais importante mesmo é se fazer disponível e ter sensibilidade para interpretar. 

Você já parou para interpretar a existência de uma árvore?
Palavralgia
Eu queria que meu aniversário
Durasse por todos os dias
Para eu receber
Flores, telefonemas e
Mil desejos de felicidades.

Eu queria que meu aniversário
Tivesse 365 dias de duração
Para comemorá-lo
Efusivamente a cada dia
Pelo simples fato de ter nascido.

Eu queria que no meu aniversário
Presente mesmo
Fosse a sua lembrança,
A sua ligação,
As suas palavras amigas,
Mas, acima de tudo,
O seu abraço,
Porque o melhor presente de todos
É ser presente!
Palavralgia
Já não sou a mesma.
Fui devastada.
Meus restos foram
Jogados sobre mim.

Estou em colapso.
Minhas forças se
Esvaem água abaixo.

Alagada, boio entre
Meus detritos
Em profusão.

Já quase sem fôlego,
Agarro-me ao que
Talvez possa ser a salvação
Em meio a toda essa poluição.

Luto constantemente contra
Os habitantes de mim
Para que eu não entre
Em completa extinção.

Palavralgia
Sou a maestrina de mil vozes
Que ecoam dentro de mim.
Umas sussurram baixinho,
Outras gritam histéricas feito loucas,
Algumas reclamam o tempo todo,
Muitas são insistentes,
Algumas outras se calam,
Mas estas últimas, dissimuladas,
Ficam enviando renitentes mensagens mudas.
A todas ouço,
Mas a nem todas dou ouvidos.
Somente a algumas obedeço,
Ou elas me vencem pela insistência
Ou pelo cansaço.
São elas que me incentivam,
Mais do que qualquer outra coisa,
A realizar os meus intentos,
A explorar os meus tormentos
E a ter menos comedimento.

Por isso, deixo que as vozes falem
E falem bem mais alto que a sensatez.

São elas que me fazem assim
Meio inquieta,
Meio confusa, meio louca, meio poeta.
Essa sou eu,
Inteirinha, toda incompleta.
Palavralgia
Avisto, lá longe, arrastando-se pela sarjeta, na contramão, um vulto disforme que me desperta a atenção, pois não distingo, ao certo, o que pode ser.

O vulto se locomove malemolente, meio esvoaçante, como se fosse alçar voo a qualquer instante. Não parece humano. Tem um formato estranho. Detenho-me para vê-lo se aproximar lentamente, cambaleante, com uma cadência diferente em seu movimento meio manco.

Todo mundo já viu ou pensou ter visto um vulto qualquer e fica aquela dúvida: era verdadeiro ou apenas ilusão?

Penso, a princípio, ser uma ilusão de ótica ou talvez o resultado da minha incurável miopia. É possível que aquilo nem exista. Fico parada no acostamento, dentro do carro, com o meu inseparável e imprescindível celular na mão, esperando provavelmente testemunhar algo do outro mundo.

Tenho medo, mas a minha curiosidade é maior e a possibilidade de estar sendo enganada pela miopia me consola. Talvez não seja nada. Provavelmente a minha deficiência visual esteja distorcendo algum animal.

Aquilo, seja o que for, continua se movimentando dificultosamente, ainda distante, na minha direção. Aproxima-se pouco a pouco em seu movimento que pende para um lado.

Estou curiosa. Preciso ver do que se trata. Decido aguardar.

A certa altura, consigo vislumbrar algo que me parece meio transparente em torno do vulto disforme. Demoro-me apertando as vistas para ver se distingo o vulto, enquanto carros passam em alta velocidade por mim e, mais adiante, por ele.

Será que ninguém o vê?

É noite. Eu estou parada no acostamento. Quero ver com detalhes aquilo que se aproxima. Já consigo ver que tem uma cor esbranquiçada. Fecho a janela do carro e me agarro ao celular, sem o qual não sobrevivo.

De vez em quando, o vulto esvoaçante e esbranquiçado dá meia parada, demora-se um pouco para depois continuar se movendo capenga.

A coisa está mais próxima. Apesar de esquisito, há algo de humano naquilo, que mal posso esperar para ver o que é.

O vulto continua devagar, esbranquiçado, meio transparente, esvoaçante e coxo. Aproxima-se lentamente, mais e mais. E eu olhando fixamente. Não é ilusão de ótica. É algo de verdade.

Quando o vejo quase diante de mim, percebo que sua verdade é grande. Muito maior que a minha, embora seja invisível aos olhos do mundo.

É humano, agora me certifico, apesar de não parecer. Vejo-o bem de perto. Ignora-me enquanto o observo interromper, mais uma vez, sua lenta e cambaleante caminhada para revirar calmamente uma lata de lixo e depois retomá-la mastigando algo.

Sinto-me envergonhada por escolher o menu e, não raro, reclamar por não estar a gosto.

O homem manca por causa de uma das pernas muito inchada. Nela carrega amarradas inumeráveis sacolas de supermercados meio avermelhadas pelo sangue ressecado.

O restante do corpo está também cuidadosamente coberto com as sacolas esbranquiçadas e transparentes com milhares de pontas esvoaçantes. Os braços, pernas, abdômen e a testa estão completamente envoltos nas sacolas que ele vai acrescentando ao seu corpo, uma a uma, com nós bem apertados.

Aquele ser branco, esvoaçante me parece agora um anjo, que ninguém vê. Ele não tem celular, apenas reúne o que pode, como querendo agregar alguma coisa ao seu ser, sacolas amarradas umas por cima das outras.

Ele é muito maior, mais resistente, mais forte, mais digno que eu, pois conhece a vida real. Eu sofro por coisas supérfluas. Ele não sabe o que é isso, nem conhece esta palavra. Supérfluo é uma palavra bonita. Ele não carece de palavras, nem de beleza. Beleza e tudo mais é supérfluo, como as palavras.

Segue paciente seu caminho sem destino. Seu caminho, em direção oposta, cruza o meu. Ele não me olha, mas vejo que percebe a minha presença. Quem se importa? Para quem já se acostumou a ser invisível, a presença não tem a menor importância. A ausência já está instalada e completamente aderida àquele ser que não precisa de nada. Eu preciso.

Envergonhada por sentir um misto de receio, medo e impotência, percebo que aquele desprezado espantalho é muito mais importante que eu, porque não sente medo, nem receio de nada, enfrenta as agruras da sua condição sem reclamar.

Por um instante, invejo sua resistência à infinita crueldade do mundo, que fez deste esfarrapado ser, um gigante da sobrevivência e de mim uma morta sem meu mísero celular multifunções.

Eu, na minha fragilidade, me rendo às exigências e crueldades do mundo. Ele, forte, as enfrenta e segue adiante seu caminho. 

Ele importa; eu sou apenas mais uma que vive de ilusão. Ele, mendigo do corpo; eu... falta alma em mim.

Ao assistir àquela cena diante da lixeira, agarrei a minha carteira e dela retirei uma nota de cinco reais. A esta altura, o homem esfarrapado já ia mastigando à pequena distância, voltando, aos poucos, a ser apenas um vulto esvoaçante disforme.

Com a nota na mão, abro a porta do carro, sentindo uma raiva uterina, visceral de mim mesma e do mundo. Senti-me mais amarrada que o espantalho cambaleante. Tive vontade de jogar a nota no chão e pisoteá-la até ficar mais estropiada que o homem que já virava vulto distante outra vez.

Respirei fundo, olhei para o céu estrelado com sua lua bem acesa e sorridente. Tive o desejo de me soltar das próprias amarras com seus nós cuidadosamente apertados, abrir os braços e pedir para mim mesma, gritando bem alto: UMA ESMOLA PELO AMOR DE DEUS !!!!!!!!!
Palavralgia
Peguei um caminho tortuoso. Andei por seus becos e vielas com balde na cabeça. Eu varria, arrumava, andava muito para buscar água. 

Brincava, mas só quando a mãe deixava. Ouvia novela no rádio, sonhava. Andava de bicicleta emprestada, com o pé por dentro do esquadro porque não alcançava. Fugia para correr atrás de doce. Apanhava por causa disso. Pulava Carnaval no trem, meu irmão me levava. Fantasiado com saia plissada e bolero bordado, com seus olhos azuis a todas as moças encantava. Andei de carrinho de mão, o pai empurrava para comprar laranja e banana na feira, isso nunca faltava! De dia era ele que cuidava, cozinhava, dava carinho, porque à noite trabalhava. Atravessei a ponte de vestido novo para ir à missa, no Domingo minha mãe levava, dia de semana na fábrica ela labutava. 

Fugi de novo quando o paiol explodiu. Levei, embaixo da camisola, Que Lindo, meu pinto de estimação. Meu pai, na fábrica, se escondeu embaixo de um caminhão. Fomos parar longe de casa por causa da explosão. Voltamos de manhazinha, estava tudo fora do lugar, mas, que bom, a casa estava lá e nós todos para completar. 

Éramos sete: o pai trabalhava à noite como vigia na fábrica; a mãe, de dia, como tecelã; tinha dois irmãos homens feitos e mais duas irmãs, ainda crianças como eu. A casa da Mindô era o nosso passeio favorito porque tinha arroz doce e as meninas tinham bonecas e vestidos bonitos. 

Atravessei a ponte para lá e para cá para aprender a costurar. Não aprendi, mas fiquei do lado de lá. Quis ver a felicidade, mas perdi a mocidade. Quis tornar a atravessar a ponte. Houve tempestades, nuvens negras, trovoadas retumbantes, raios lancinantes. Teve enchentes, fui arrastada pelas correntes. A ponte se partiu e eu já havia feito a travessia. 

Lavei, passei, cozinhei. Cuidei, cuidei, cuidei. Chorei. Perdi o sorriso e nunca mais encontrei. Adquiri um sorriso novo, só para seguir adiante. A ponte já não existe mais, para quê olhar para trás? O caminho tornou-se mais tortuoso ainda, como jamais imaginei. Cuidei, cuidei e lembrei que meu pai cuidava de mim. Nas noites frias, esquentava tijolo para aquecer os meus pés e ficava à beira da cama até eu adormecer. Esperava a mãe chegar, para só então seu turno noturno começar. 

Meu pai, como a ponte, já não existe mais, mas as lembranças aquecem meu coração, como o tijolo que ele esquentava aquecia meus pés, e me dão força para continuar a travessia, embora não haja mais ponte. Mesmo se houvesse, não seria possível voltar. Voltar, só mesmo na memória que é um grande tesouro, que acalenta e consola. 

Perdi! Perdi, perdi, perdi, mas nunca me perdi. Continuei perdendo, a juventude, os entes, os dentes, mas nunca perdi a alegria. 

O jogo é de perde e ganha. Tem gente que ganha mais do que perde. Tem gente que perde mais do que ganha. Ganhei uma nova vida, mas dentro dela as marcas da antiga. Fiz nova travessia. Sem ponte, aportei em outro lugar, avistei novos horizontes. Tenho sempre saudades do outro lado da ponte, com as latas d’água na cabeça, os São Cosme e Damião, as novelas do rádio e os sonhos, que nunca realizei. 

Realizei muitas coisas, ajudei a construir sonhos, continuei cuidando para que o caminho fosse menos pedregoso e foi. A estrada ficou mas lisa, asfaltada, arborizada, arejada, mais alegre e bem cuidada. 

São travessias dentro da Travessia. O lugar, mais acolhedor, tinha paisagem bonita e mais conforto. Finalmente encontrei o amor! Amei muito e fui muito amada e ainda sou.