Peguei um caminho tortuoso. Andei por seus becos e vielas com balde na cabeça. Eu varria, arrumava, andava muito para buscar água.
Brincava, mas só quando a mãe deixava. Ouvia novela no rádio, sonhava. Andava de bicicleta emprestada, com o pé por dentro do esquadro porque não alcançava. Fugia para correr atrás de doce. Apanhava por causa disso. Pulava Carnaval no trem, meu irmão me levava. Fantasiado com saia plissada e bolero bordado, com seus olhos azuis a todas as moças encantava. Andei de carrinho de mão, o pai empurrava para comprar laranja e banana na feira, isso nunca faltava! De dia era ele que cuidava, cozinhava, dava carinho, porque à noite trabalhava. Atravessei a ponte de vestido novo para ir à missa, no Domingo minha mãe levava, dia de semana na fábrica ela labutava.
Fugi de novo quando o paiol explodiu. Levei, embaixo da camisola, Que Lindo, meu pinto de estimação. Meu pai, na fábrica, se escondeu embaixo de um caminhão. Fomos parar longe de casa por causa da explosão. Voltamos de manhazinha, estava tudo fora do lugar, mas, que bom, a casa estava lá e nós todos para completar.
Éramos sete: o pai trabalhava à noite como vigia na fábrica; a mãe, de dia, como tecelã; tinha dois irmãos homens feitos e mais duas irmãs, ainda crianças como eu. A casa da Mindô era o nosso passeio favorito porque tinha arroz doce e as meninas tinham bonecas e vestidos bonitos.
Atravessei a ponte para lá e para cá para aprender a costurar. Não aprendi, mas fiquei do lado de lá. Quis ver a felicidade, mas perdi a mocidade. Quis tornar a atravessar a ponte. Houve tempestades, nuvens negras, trovoadas retumbantes, raios lancinantes. Teve enchentes, fui arrastada pelas correntes. A ponte se partiu e eu já havia feito a travessia.
Lavei, passei, cozinhei. Cuidei, cuidei, cuidei. Chorei. Perdi o sorriso e nunca mais encontrei. Adquiri um sorriso novo, só para seguir adiante. A ponte já não existe mais, para quê olhar para trás? O caminho tornou-se mais tortuoso ainda, como jamais imaginei. Cuidei, cuidei e lembrei que meu pai cuidava de mim. Nas noites frias, esquentava tijolo para aquecer os meus pés e ficava à beira da cama até eu adormecer. Esperava a mãe chegar, para só então seu turno noturno começar.
Meu pai, como a ponte, já não existe mais, mas as lembranças aquecem meu coração, como o tijolo que ele esquentava aquecia meus pés, e me dão força para continuar a travessia, embora não haja mais ponte. Mesmo se houvesse, não seria possível voltar. Voltar, só mesmo na memória que é um grande tesouro, que acalenta e consola.
Perdi! Perdi, perdi, perdi, mas nunca me perdi. Continuei perdendo, a juventude, os entes, os dentes, mas nunca perdi a alegria.
O jogo é de perde e ganha. Tem gente que ganha mais do que perde. Tem gente que perde mais do que ganha. Ganhei uma nova vida, mas dentro dela as marcas da antiga. Fiz nova travessia. Sem ponte, aportei em outro lugar, avistei novos horizontes. Tenho sempre saudades do outro lado da ponte, com as latas d’água na cabeça, os São Cosme e Damião, as novelas do rádio e os sonhos, que nunca realizei.
Realizei muitas coisas, ajudei a construir sonhos, continuei cuidando para que o caminho fosse menos pedregoso e foi. A estrada ficou mas lisa, asfaltada, arborizada, arejada, mais alegre e bem cuidada.
São travessias dentro da Travessia. O lugar, mais acolhedor, tinha paisagem bonita e mais conforto. Finalmente encontrei o amor! Amei muito e fui muito amada e ainda sou.