Às vezes é necessário entrar no porão para ver o que anda
esquecido por lá.
O meu porão está cheio de coisas que eu nem sabia
existir, porém fui eu mesma que as deixei ali. O acúmulo me obrigou a descer ao
porão, porque, sem perceber, fui jogando muitas coisas e elas foram ficando
umas por cima das outras, abarrotando o espaço e tornando difícil encontrar o
que é preciso, mesmo o que seja impreciso.
Tarefa árdua a de entrar no porão e ter que se deparar
com coisas até desconhecidas ou irreconhecíveis. Mas é preciso descer ao porão,
remexer tudo, olhar para todas as coisas que lá se encontram, com o objetivo de
lhes dar o devido destino. Tem coisas que, não têm jeito, vão ficar no porão. Um
dia será preciso lançar mão, nem que seja para jogar no lixo.
Meu porão tem chão e teto, tem dimensões e
referências, por isso não dá para se perder, apesar da dificuldade de se achar,
por causa do entulho que transborda.
Não é muito bom entrar no porão, porque é empoeirado,
escuro, sombrio e cheio de habitantes peculiares a estes tipos de ambiente.
Contudo, é preciso ter consciência de que faço parte dele. Tudo que ali se
encontra pertence a mim, ao meu passado, aos meus antecedentes, à minha
história. Tudo está relacionado.
O interessante é que escondemos, às vezes até sem nos dar conta, coisas preciosas no porão. Eu me surpreendi ao lá encontrar verdadeiras
joias.
Enquanto tateio e tento me equilibrar caminhando entre
objetos, teias e insetos, que amedrontados, fogem e se escondem entre as
quinquilharias, deparo-me com uma máquina de coser antiga da minha avó
que, com toda certeza, fez muitas costuras e remendos antes de vir parar no
porão. É engraçado falar “coser”, no meu porão encontro estas palavras.
Foi providencial encontrar a antiga máquina da minha
avó, talvez precise recuperá-la e colocá-la para funcionar, pois ainda há
muitas coisas que preciso costurar e remendar.
Por falar na minha avó, ela adorava roseiras. Cultiva-as
com muita dedicação no jardim de casa. Todos os dias, ia olhá-las, conversava
com elas, que cresciam viçosas e retribuíam num desdobrar lento e perfeito de
pétalas, desabrochando em verdadeiras obras de arte em forma de rosa. Isso
fazia minha avó feliz.
Eu achava esquisito minha avó comprar minhocas e cocô
de cavalo no carroceiro para colocar nas roseiras.
Minha avó faz parte do meu porão. A antiga máquina de
coser empoeirada me fez encontrá-la com suas roseiras. As minhocas fazem bem
para as roseiras, servem de adubo. Sem elas, a terra não respira e as roseiras não
crescem como deveriam.
Encontrei também uma enxada enferrujada. Ela pertencia
ao meu avô. Eu achava engraçado o meu avô trabalhar no banco de carpinteiro,
tendo um lenço de bolso na cabeça com nozinhos nas quatro pontas. Ele dizia que
era para se proteger do sol. Era ele que, com a enxada, cavava buracos no
jardim para colocar as minhocas nas roseiras da minha avó, sempre com o
lencinho engraçado na cabeça.
O banco de carpinteiro também será recuperado,
utilizarei na minha oficina de versos.
Até me esqueço dos insetos e bichos que moram no meu
porão, ao encontrar o lenço amarrado nas quatro pontas, que pertenceu ao meu
avô. Como disse, o porão não tem só insetos e coisas inúteis, guarda
verdadeiros tesouros. Este lencinho amarrado é uma preciosidade. Traz cheiro de
sol, suor e rosas. Traz cheiro de infância ao meu porão, renova a atmosfera e
faz meu coração bater acelerado de felicidade. Diante do lencinho, é como se eu
estivesse vendo meu avô encurvado ao redor das roseiras, sob a rigorosa
inspeção do par dos inesquecíveis olhos azuis da minha avó. Este olhar ilumina
o meu porão.
Dia desses, fui surpreendida pela pergunta de um
menino lá da comunidade: “Tia, na sua casa tem piscina de chão?” A princípio,
não entendi muito bem o que seria uma piscina de chão, mas logo me veio à mente
os banhos de mangueira na biquinha do jardim da minha casa de infância. Muitas
vezes, me peguei imaginando o espaçoso
retângulo em que minha avó cultivava suas roseiras, transformado em uma
maravilhosa piscina. Logo, então, compreendi o que quis dizer o menino de sete
anos. Para ele, piscina de chão significa não ser de plástico. Assim como eu
sonhava em transformar o canteiro da minha avó em piscina, ele também sonhava
em trocar a velha piscina de plástico para entrar, pela primeira vez, numa
piscina de verdade. O menino da comunidade, com sua singela pergunta, nem
imaginava que me faria encontrar a minha piscina de chão. Embora ela nunca
tenha existido de verdade, apenas nos desejos e sonhos de menina, pôde agora
ser recuperada no meu porão.
Tudo isso me fez decidir uma coisa inusitada, muito inspirada pela
máquina de coser da minha avó e pela enxada enferrujada do meu avô, que também
será recuperada para cavar um buraco no chão do porão, ali, bem no meio de
todas as coisas, onde plantarei uma roseira. Não vou precisar comprar minhocas,
elas já existem por lá, são bem vindas para a roseira que vai brotar.
O meu porão tem chão e teto, tem dimensões e
referências. A roseira será uma grande referência no meio do porão. O lencinho
do meu avô com seu cheiro de infância e a luz dos olhos azuis da minha avó
arejam, renovam a atmosfera e iluminam o
ambiente onde verei crescer minha roseira.
Não sei por que resolvi entrar no porão. Nem pensar em
fazer faxina geral! É impossível. Apenas rever o que lá existe, mudar algumas
coisas de lugar, arejar o ambiente e saber que, de uma forma ou de outra,
incomodando ou trazendo gratas lembranças, tudo o que ali se encontra é meu. Portanto
tenho plena liberdade para lidar com todas aquelas coisas, dando-lhes bom
destino e modificando o ambiente da forma que me aprouver.
Escolhi manter o porão intacto, sem jogar nada fora e
aprender a lidar com a penumbra, com as sombras, com os bichinhos, com a poeira
e, em meio a tudo isso, descobrir tesouros impagáveis, que tornam o meu porão um
lugar de lembranças e transformação, mas, sobretudo, um lugar de recuperação.