Palavralgia
É tão monótono ser um só, tão solitário, mas, ao mesmo tempo, ser muitos é conflitante e ameaçador. Fico dividida entre um e um milhão.

Nós vivemos na cultura do mais, reflito observando o peixinho solitário dentro do pequeno e desértico aquário que meu filho ganhou de presente.

Então é inevitável pensar na pandemia, milhões de indivíduos infectados no mundo todo, enquanto pessoas morrem sozinhas em seus leitos, longe de seus afetos.

Sempre me interessei por essa inter-relação entre a parte e o todo, o micro e o macro. Muitas vezes, tenho a impressão de que a interação entre eles não existe, que só a parte importa, e completamente apartada do todo. Penso nisso enquanto mexo os dedos entre milhares de minúsculas bolinhas das quais vou retirando uma a uma e jogando dentro do aquário para alimentar meu não tão solitário e belo peixinho. Então, cogito comigo mesma: a interdependência existe ou não?

O mundo em que vivemos é uma bola, embora alguns ainda duvidem disso. Este pensamento provoca um pequeno e automático sorriso em meus lábios, enquanto mergulho os dedos no saco repleto de pequenas esferas de ração. O peixe do meu filho não morrerá de fome.

Integramos esta bola que, aos poucos, se desintegra. Somos parte deste mundo e tão pequenos e impotentes diante de grandes questões.

Em sua esfera líquida e cristalina, o peixinho nada. Em nossa esfera empoeirada e poluída, até agora, nada. E nada, cada um em sua própria árida esfera... ou mergulhando de cabeça sem se importar com nada.

Fernando Pessoa dizia “Eu sou muitos” referindo-se, provavelmente, aos seus diversificados heterônimos. Penso que, entre outras grandiosas coisas, esta talvez fosse sua maneira de diluir a solidão. Olhar sob a perspectiva do outro pode ser uma forma de não estar só.

Pelo nosso esférico planeta, pululam bilhões de indivíduos. Cada um, um, mas todos unidos pela mesma preocupante situação terráquea.

O, agora também meu, peixinho nada sozinho e despreocupado, de um lado para o outro, em seu esférico planeta. Creio que, por meio de seu rudimentar instinto, ele perceba que existe inter-relação e interdependência, talvez por isso resista à solidão.

Já que é preciso ficarmos mais recolhidos e menos em contato social, que seja uma solidão produtiva, criativa e principalmente transformadora, em nós mesmos em primeiro lugar, a fim de que possamos seguir em frente com as transformações profundas e irreversíveis que estão acontecendo no mundo.

O peixinho, agora saciado, descansa sossegado no fundo do aquário e eu deixo o pequeno animal e as esferas que o alimentam e volto a mergulhar na minha própria esfera.



Palavralgia
Roberto Weigand
Ilustração: Roberto Weigand
Fixei moradia no “quase”. Eu me afeiçoo às palavras, mesmo àquelas que parecem só ter um lado. Talvez seja isto o que mais me atraia a estas paragens. Fui me deixando ficar e, quando dei por mim, já havia feito a mudança. 

Ao que parece, “quase” é aquilo que ainda não chegou a ser e está entre o real e o que nunca se tornará ou, pelo menos, demandará algum tempo. O “quase” vale muito pelo que ainda falta e por encerrar em si uma expectativa de completude. Por isso nele edifico a minha residência.

Se seu valor está, justamente, no que falta e este é um dos seus mais importantes aspectos, ele deixa de ser unilateral, porque, afinal, possui uma dimensão a ser construída. É exatamente este terreno árido, sombrio e incerto que escolho como exílio. Sou fugitiva da obviedade e muito democrática em todos os assuntos. Declaro aberta a discussão.

Palavralgia


Ontem a memória, a história. 
Amanhã, o afã.
Hoje, a ponte permanente, inexistente,
onde fica toda a gente,
ligando o que foi, ao que virá a ser...
ou não ser.

Ontem crescente,
amanhã minguante.
Hoje, o novo, de novo,
para a gente envelhecer.

Palavralgia


Para exercitar os neurônios, aprenda poesia.

Por considerar super procedente o conteúdo da entrevista que o historiador Leandro Karnal concedeu à CNN, reproduzo trecho em que o professor dá dicas sobre literatura. Quem desejar, assista à entrevista em sua totalidade no canal da CNN no YouTube. Vale muito a pena.
Palavralgia
A partir de uma realidade pessoal, o texto Bombardeio se conecta a vários temas da atualidade relacionados a obstáculos, individuais e coletivos, que precisam ser transpostos com vistas ao alcance de um nível de consciência mais ampliado.
Palavralgia

"It must have been love but it’s over now". Esta foi a trilha sonora enquanto estava ao volante hoje pela manhã. Fiquei com o “chicletinho” grudado. Durante todo o percurso, a musiquinha rescindia, sem consentimento prévio, em meu pensamento. Quando percebia, lá estava eu... "it must have been love ..."

Isso demonstra o pouquíssimo controle que detemos sobre o próprio pensamento.

A insistência da música, independente da minha vontade, me fez recordar de um amor da adolescência, um amor platônico, marcante que, now is over (muuuuito over), mas que foi amor, como o que diz a música da dupla sueca Roxette.

O “chicletinho”, de alguma forma, mexeu comigo. Não por conta de um saudosismo romântico, mas por deslocar de alguma profundeza recôndita um sentimento submerso e trazê-lo à tona. Esta lembrança apresenta-se encharcada, líquida, como tudo a nossa volta. Aquele amor importante da adolescência, há muito diluído como uma gota de tinta que cai num balde d’água, teve a sua concretude, o seu momento. Da mesma forma, o Império Romano, com toda a sua força conquistadora, também os faraós do antigo Egito, autoproclamados deuses vivos, e assim todas as coisas. Tudo tem a sua glória, sua importância, para depois se diluir.

Setenta e um por cento da superfície do nosso planeta é coberta de água. O corpo humano é fluido com sessenta e cinco por cento de líquido. Muitas vezes estamos literalmente mergulhados no alto índice de umidade do ar. A nossa fluidez é muito mais concreta que a concretude da nossa existência. Nós somos líquidos, vivemos num meio fluido e nele nos diluímos.

Nada é permanente. De alguma maneira, esta máxima, chega a ser consoladora, principalmente quando relacionada à realidade política e econômica em que vivemos.

Tudo escorre por entre os dedos, mesmo quando temos a certeza de segurarmos algo com firmeza nas mãos.

Eu me pergunto o que restou daquela paixão nem tão pueril assim. E a resposta é: a memória, mas só, quando algum dispositivo, como esta música, a aciona. Contudo, a lembrança guarda um grande distanciamento daquilo que foi vivido. Até a memória vem dispersada, dissolvida, fragmentada, como respingos e o sentimento que ela traz é completamente diferente daquele da experiência vivida. Enquanto estamos conectados a todos os meandros, detalhes, nuanças e tonalidades dos tecidos da história, tudo tem uma coloração. Quando nos voltam à memória, muitas vezes, as cores estão diferentes, por vezes esvanecidas. O distanciamento do que nos parecia concreto dissipa esta concretude e nos traz amadurecimento, como o de uma manga amarelinha que despenca lá dos píncaros da árvore para cumprir o seu destino na dura realidade do chão.

Em vez de um Super-Homem, talvez alguma super entidade das águas possa nos restituir a glória, mas isso somente é possível na memória, que tem sua natureza fluida. Ao ser tocada, contamina, molha tudo em volta, mas depois evapora. Esbarrar numa lembrança é como molhar os pés numa fina lâmina de água e ter acesso a tudo que ali está contido, como o que acontece com a personagem Eleven da série Stranger Things.

Enquanto estamos vivendo a situação, tudo nos parece tão imprescindível, tão insubstituível, tão vital, ainda mais quando se trata de paixão. Mas quando passa, muitas vezes não queremos nem lembrar, frequentemente nos achamos até ridículos. Por outro lado, tem gente que nunca supera. Imagina, se não conseguimos controlar nem uma musiquinha que insiste em povoar nosso pensamento, quanto mais dominar um sentimento tão forte. Outros, no entanto, passam por uma, duas, muitas paixões e seguem o fluxo, diluindo estas situações no tempo, enquanto armazenam seus resíduos em alguma caixinha pouco acessada da lembrança.

Não apenas o curso da história se modifica, nós também nos transformamos. E, num dia qualquer, alguma coisa esbarra sem querer na caixinha há muito esquecida – uma musiquinha chiclete, por exemplo – fazendo com que seu conteúdo se derrame e impregne todo o ambiente mental com aquele perfume antigo e ultrapassado, para depois evaporar no ar, mas não sem antes acordar sentimentos e sensações adormecidos, que fazem o coração disparar.

Num primeiro momento, são os sentimentos que despertam fazendo com que fiquemos inebriados, suspensos, descolados da realidade atual. Em seguida, vem a profunda reflexão de como tudo passou, como um rio, são águas passadas. Por último, restam uns destroços boiando em torno de nós durante todo o dia. De vez em quando, trombamos com alguns deles, o que nos dá a sensação de estarmos com um pé no passado e outro no presente. Mas até a renitente música “chicletinho” que impera absoluta em nosso pensamento por longos momentos, como um imponente faraó, vai escorrendo, se esvaindo... e o ritmo continua... "It must have been good but I lost it somehow... It’s where the water flows..." até evaporar completamente.

Texto escrito em algum dia de 2018
Palavralgia
Uma historinha para divertir pessoas de todas as idades!




Palavralgia
O inexorável caminho é o de volta. Não dá mais para seguir em frente sem comprometer a humanidade inteira. É preciso parar e olhar para tudo com um novo olhar!