Palavralgia
Sou a maestrina de mil vozes
Que ecoam dentro de mim.
Umas sussurram baixinho,
Outras gritam histéricas feito loucas,
Algumas reclamam o tempo todo,
Muitas são insistentes,
Algumas outras se calam,
Mas estas últimas, dissimuladas,
Ficam enviando renitentes mensagens mudas.
A todas ouço,
Mas a nem todas dou ouvidos.
Somente a algumas obedeço,
Ou elas me vencem pela insistência
Ou pelo cansaço.
São elas que me incentivam,
Mais do que qualquer outra coisa,
A realizar os meus intentos,
A explorar os meus tormentos
E a ter menos comedimento.

Por isso, deixo que as vozes falem
E falem bem mais alto que a sensatez.

São elas que me fazem assim
Meio inquieta,
Meio confusa, meio louca, meio poeta.
Essa sou eu,
Inteirinha, toda incompleta.
Palavralgia
Avisto, lá longe, arrastando-se pela sarjeta, na contramão, um vulto disforme que me desperta a atenção, pois não distingo, ao certo, o que pode ser.

O vulto se locomove malemolente, meio esvoaçante, como se fosse alçar voo a qualquer instante. Não parece humano. Tem um formato estranho. Detenho-me para vê-lo se aproximar lentamente, cambaleante, com uma cadência diferente em seu movimento meio manco.

Todo mundo já viu ou pensou ter visto um vulto qualquer e fica aquela dúvida: era verdadeiro ou apenas ilusão?

Penso, a princípio, ser uma ilusão de ótica ou talvez o resultado da minha incurável miopia. É possível que aquilo nem exista. Fico parada no acostamento, dentro do carro, com o meu inseparável e imprescindível celular na mão, esperando provavelmente testemunhar algo do outro mundo.

Tenho medo, mas a minha curiosidade é maior e a possibilidade de estar sendo enganada pela miopia me consola. Talvez não seja nada. Provavelmente a minha deficiência visual esteja distorcendo algum animal.

Aquilo, seja o que for, continua se movimentando dificultosamente, ainda distante, na minha direção. Aproxima-se pouco a pouco em seu movimento que pende para um lado.

Estou curiosa. Preciso ver do que se trata. Decido aguardar.

A certa altura, consigo vislumbrar algo que me parece meio transparente em torno do vulto disforme. Demoro-me apertando as vistas para ver se distingo o vulto, enquanto carros passam em alta velocidade por mim e, mais adiante, por ele.

Será que ninguém o vê?

É noite. Eu estou parada no acostamento. Quero ver com detalhes aquilo que se aproxima. Já consigo ver que tem uma cor esbranquiçada. Fecho a janela do carro e me agarro ao celular, sem o qual não sobrevivo.

De vez em quando, o vulto esvoaçante e esbranquiçado dá meia parada, demora-se um pouco para depois continuar se movendo capenga.

A coisa está mais próxima. Apesar de esquisito, há algo de humano naquilo, que mal posso esperar para ver o que é.

O vulto continua devagar, esbranquiçado, meio transparente, esvoaçante e coxo. Aproxima-se lentamente, mais e mais. E eu olhando fixamente. Não é ilusão de ótica. É algo de verdade.

Quando o vejo quase diante de mim, percebo que sua verdade é grande. Muito maior que a minha, embora seja invisível aos olhos do mundo.

É humano, agora me certifico, apesar de não parecer. Vejo-o bem de perto. Ignora-me enquanto o observo interromper, mais uma vez, sua lenta e cambaleante caminhada para revirar calmamente uma lata de lixo e depois retomá-la mastigando algo.

Sinto-me envergonhada por escolher o menu e, não raro, reclamar por não estar a gosto.

O homem manca por causa de uma das pernas muito inchada. Nela carrega amarradas inumeráveis sacolas de supermercados meio avermelhadas pelo sangue ressecado.

O restante do corpo está também cuidadosamente coberto com as sacolas esbranquiçadas e transparentes com milhares de pontas esvoaçantes. Os braços, pernas, abdômen e a testa estão completamente envoltos nas sacolas que ele vai acrescentando ao seu corpo, uma a uma, com nós bem apertados.

Aquele ser branco, esvoaçante me parece agora um anjo, que ninguém vê. Ele não tem celular, apenas reúne o que pode, como querendo agregar alguma coisa ao seu ser, sacolas amarradas umas por cima das outras.

Ele é muito maior, mais resistente, mais forte, mais digno que eu, pois conhece a vida real. Eu sofro por coisas supérfluas. Ele não sabe o que é isso, nem conhece esta palavra. Supérfluo é uma palavra bonita. Ele não carece de palavras, nem de beleza. Beleza e tudo mais é supérfluo, como as palavras.

Segue paciente seu caminho sem destino. Seu caminho, em direção oposta, cruza o meu. Ele não me olha, mas vejo que percebe a minha presença. Quem se importa? Para quem já se acostumou a ser invisível, a presença não tem a menor importância. A ausência já está instalada e completamente aderida àquele ser que não precisa de nada. Eu preciso.

Envergonhada por sentir um misto de receio, medo e impotência, percebo que aquele desprezado espantalho é muito mais importante que eu, porque não sente medo, nem receio de nada, enfrenta as agruras da sua condição sem reclamar.

Por um instante, invejo sua resistência à infinita crueldade do mundo, que fez deste esfarrapado ser, um gigante da sobrevivência e de mim uma morta sem meu mísero celular multifunções.

Eu, na minha fragilidade, me rendo às exigências e crueldades do mundo. Ele, forte, as enfrenta e segue adiante seu caminho. 

Ele importa; eu sou apenas mais uma que vive de ilusão. Ele, mendigo do corpo; eu... falta alma em mim.

Ao assistir àquela cena diante da lixeira, agarrei a minha carteira e dela retirei uma nota de cinco reais. A esta altura, o homem esfarrapado já ia mastigando à pequena distância, voltando, aos poucos, a ser apenas um vulto esvoaçante disforme.

Com a nota na mão, abro a porta do carro, sentindo uma raiva uterina, visceral de mim mesma e do mundo. Senti-me mais amarrada que o espantalho cambaleante. Tive vontade de jogar a nota no chão e pisoteá-la até ficar mais estropiada que o homem que já virava vulto distante outra vez.

Respirei fundo, olhei para o céu estrelado com sua lua bem acesa e sorridente. Tive o desejo de me soltar das próprias amarras com seus nós cuidadosamente apertados, abrir os braços e pedir para mim mesma, gritando bem alto: UMA ESMOLA PELO AMOR DE DEUS !!!!!!!!!
Palavralgia
Peguei um caminho tortuoso. Andei por seus becos e vielas com balde na cabeça. Eu varria, arrumava, andava muito para buscar água. 

Brincava, mas só quando a mãe deixava. Ouvia novela no rádio, sonhava. Andava de bicicleta emprestada, com o pé por dentro do esquadro porque não alcançava. Fugia para correr atrás de doce. Apanhava por causa disso. Pulava Carnaval no trem, meu irmão me levava. Fantasiado com saia plissada e bolero bordado, com seus olhos azuis a todas as moças encantava. Andei de carrinho de mão, o pai empurrava para comprar laranja e banana na feira, isso nunca faltava! De dia era ele que cuidava, cozinhava, dava carinho, porque à noite trabalhava. Atravessei a ponte de vestido novo para ir à missa, no Domingo minha mãe levava, dia de semana na fábrica ela labutava. 

Fugi de novo quando o paiol explodiu. Levei, embaixo da camisola, Que Lindo, meu pinto de estimação. Meu pai, na fábrica, se escondeu embaixo de um caminhão. Fomos parar longe de casa por causa da explosão. Voltamos de manhazinha, estava tudo fora do lugar, mas, que bom, a casa estava lá e nós todos para completar. 

Éramos sete: o pai trabalhava à noite como vigia na fábrica; a mãe, de dia, como tecelã; tinha dois irmãos homens feitos e mais duas irmãs, ainda crianças como eu. A casa da Mindô era o nosso passeio favorito porque tinha arroz doce e as meninas tinham bonecas e vestidos bonitos. 

Atravessei a ponte para lá e para cá para aprender a costurar. Não aprendi, mas fiquei do lado de lá. Quis ver a felicidade, mas perdi a mocidade. Quis tornar a atravessar a ponte. Houve tempestades, nuvens negras, trovoadas retumbantes, raios lancinantes. Teve enchentes, fui arrastada pelas correntes. A ponte se partiu e eu já havia feito a travessia. 

Lavei, passei, cozinhei. Cuidei, cuidei, cuidei. Chorei. Perdi o sorriso e nunca mais encontrei. Adquiri um sorriso novo, só para seguir adiante. A ponte já não existe mais, para quê olhar para trás? O caminho tornou-se mais tortuoso ainda, como jamais imaginei. Cuidei, cuidei e lembrei que meu pai cuidava de mim. Nas noites frias, esquentava tijolo para aquecer os meus pés e ficava à beira da cama até eu adormecer. Esperava a mãe chegar, para só então seu turno noturno começar. 

Meu pai, como a ponte, já não existe mais, mas as lembranças aquecem meu coração, como o tijolo que ele esquentava aquecia meus pés, e me dão força para continuar a travessia, embora não haja mais ponte. Mesmo se houvesse, não seria possível voltar. Voltar, só mesmo na memória que é um grande tesouro, que acalenta e consola. 

Perdi! Perdi, perdi, perdi, mas nunca me perdi. Continuei perdendo, a juventude, os entes, os dentes, mas nunca perdi a alegria. 

O jogo é de perde e ganha. Tem gente que ganha mais do que perde. Tem gente que perde mais do que ganha. Ganhei uma nova vida, mas dentro dela as marcas da antiga. Fiz nova travessia. Sem ponte, aportei em outro lugar, avistei novos horizontes. Tenho sempre saudades do outro lado da ponte, com as latas d’água na cabeça, os São Cosme e Damião, as novelas do rádio e os sonhos, que nunca realizei. 

Realizei muitas coisas, ajudei a construir sonhos, continuei cuidando para que o caminho fosse menos pedregoso e foi. A estrada ficou mas lisa, asfaltada, arborizada, arejada, mais alegre e bem cuidada. 

São travessias dentro da Travessia. O lugar, mais acolhedor, tinha paisagem bonita e mais conforto. Finalmente encontrei o amor! Amei muito e fui muito amada e ainda sou.