Palavralgia
Era para ser apenas mais um inseto, destes que a gente esmaga com o chinelo. Mas não, todas as luzes dos holofotes do mundo se viraram para ele, que se transformou no mais famoso invertebrado do Universo. Não é pouca coisa, não. Não é da hora, mês, ano, década ou século, é do milênio. Mais conhecido por um nome que nem faz parte do nosso vocabulário, pelo menos não fazia. Quem não ouviu falar no bug do milênio? O estrago que este bichinho desprezível causou foi muito maior pelos boatos e especulações pré-virada do milênio, que propriamente pelo que aconteceu de real com a entrada do ano 2000.

Agora o papo já é outro. O bug agora somos nós, que viramos uma espécie de parasita planetário a ameaçar a harmonia, estabilidade e sobrevivência do planeta. Parece que esta é a profecia que está causando pânico coletivo desta vez. De acordo com o calendário Maia, o fim do mundo chega no ano 2012.

Parece incrível que, de ameaçados pelo bug do milênio, passamos a ser o próprio bug a ameaçar os milênios porvindouros do planeta, que já reage de forma mais que ostensiva contra esta infecção.

Pensando desta forma, comecei a me imaginar como um bug, um inseto insignificante, mas ameaçador (e ao mesmo tempo ameaçado). Isto dá para refletir muito. Será que eu sou uma praga do planeta? De que forma eu contribuo para que a profecia dos Maia se concretize, mesmo que não seja em 2012?

O bug do milênio e todas as profecias relacionadas ao final do século XX estavam vazias de fundamentos, mas tiveram conseqüências.

Eu considero interessante essa ótica que nos faz ver a nós mesmos como bugs, isso sim traz conseqüências desastrosas e nos coloca mais no papel de ameaçadores que de ameaçados, embora devamos entender que quanto mais ameaçadores, mais ameaçados estamos. Isso também me faz lembrar do filósofo inglês Thomas Hobbes com “o homem é o lobo do homem”.

Na verdade, à medida que o tempo passa, tornamo-nos mais ameaçados, que ameaçadores, em função do aparecimento das conseqüências de nossas ações. Creio que os holofotes do mundo, em vez de focar bugs virtuais, boatos e profecias, devem colocar cada um de nós no foco da questão. Este é um exercício que pode contribuir bastante para o esvaziamento de profecias e boatos sem fundamentos, para colocar uma lente de aumento sobre a verdadeira e única questão que realmente ameaça a nossa sobrevivência sobre o planeta: nós mesmos.

Pensando desta forma, encontraremos a verdade do vazio, já que todo boato tem um fundo de verdade, mesmo que seja um “fundilho”, o qual deve ser o nosso objeto de pesquisa e preocupação e não o boato em si.

Assim, nos preocuparemos menos com boatos e profecias, para refletir mais sobre nossas próprias atitudes ou falta delas, o que, aliás, pode trazer conseqüências muito mais ameaçadoras que um simples inseto no sistema.

A gente não gosta de se identificar com insetos, estes seres invertebrados e asquerosos, não é verdade? Mas talvez a profecia dos Maia não se concretize nem em 2012, nem em ano algum, se abandonarmos a postura parasita em relação ao nosso planeta.

Apenas boato ou apresentando um fundo de verdade, estas profecias sempre têm algum efeito, mas, acima de tudo, servem para mostrar a nossa puerilidade diante de assuntos que nos fogem à compreensão. Por outro lado, também evidenciam nossa comodidade, nosso lado parasita, em relação a assuntos que já podemos compreender e, mais ainda, ampliam nossa visão para conseguirmos enxergar o mais difícil de tudo: o quão pequenos somos e o quanto ainda precisamos crescer para termos maturidade suficiente no tratamento de assuntos relevantes, com ideias relevantes, deixando medos injustificáveis de lado, para encarar as questões com menos infantilidade e mais amadurecimento.

Se ampliarmos a nossa ótica, veremos que, em relação ao nosso planeta, na condição atual, não passamos mesmo de pequeninos bugs causando inúmeros erros no sistema (acho que dá até para dizer Solar) e neste caso, não é preciso profecia. O que se faz realmente necessária é uma conscientização do nosso papel enquanto cidadãos do Universo, a fim de que possamos atravessar os milênios, de geração em geração, deixando sempre um legado de profundo respeito ao mundo que é a casa da Humanidade. Afinal, somos humanos ou não?

Diante de qualquer boato ou profecia, não há o que temer, se tivermos em mente que não queremos ser bugs a provocar erros no sistema. Também não queremos ser hipócritas do “eu faço tudo certo, o outro é que faz errado”. Entre erros e acertos, existe um gap que eu daria o nome de zona de reciclagem, não sei bem se é isso, mas adoro esta palavra! É onde a gente aprende a noção de que tudo presta, tudo serve, tudo tem seu valor, tudo cumpre uma função. Neste hiato, a gente faz a “repescagem” e dá novas funções para hábitos antigos, sacode a poeira de atitudes enxovalhadas, renova pensamentos arcaicos, reconhece posturas tacanhas e outras que a gente nem imaginava existir. É neste espaço que a gente sai do horizonte simplificado do sim e do não, para ter visões muito mais amplas, inclusive sobre parasitas e profecias.

É exatamente neste espaço, após percorrermos infindáveis idas e vindas de um lado para outro sem sair do lugar, que finalmente podemos alcançar alguma coisa importante para nós mesmos e para o mundo. Só então, e este já é um primeiro passo, reconheceremos, sem asco, o parasita em nós.
Palavralgia
Não quero ser fera, quero ser esfera e integrar o círculo.
Quero percorrer a reta e chegar a um ponto.
Quero unir os pontos na fração de um segundo.
Quero existir e pertencer ao conjunto.
Quero inventar operações.
Não quero ser quadrilátero, quero ser “de visão”.
Quero multiplicar a ação,
Para ser “eco-ação”.
Quero ter expressão.
Quero ser a parte, quero estar no todo.
Quero ser logo, a ritmo acelerado.
Quero ter ângulo, quero ser vértice.
Quero percorrer todas as curvas e descobrir novas áreas.
Não quero ser menos, não quero ser mais, quero ser igual.
Não quero ser mais um, não quero ser menos um...
Quero ser, simplesmente, um. 
(relíquia escrita em setembro de 1998)