Palavralgia
Imagem: Cândido Portinari, Seca, Gravura antiga, 17 X 26 cm
O Mundo dos Mortos é um conto constante da publicação Além do Muro da Estrada, de 2016. Este texto trata da chegada de um singelo sertanejo a um grande centro urbano. Em fuga da escaldante seca nordestina, o moço vai tentar uma vida com menos sofrimento. Acontece que, ao chegar à cidade grande, Vivaldo, o ingênuo sertanejo protagonista da história, é acometido por um grande estranhamento. Ele passa a achar tudo muito diferente, muito estranho, a começar pelo comportamento e atitude das pessoas. Esse estranhamento provoca uma espécie de delírio que vai se exacerbando na medida em que o rapaz vai se deparando com as situações típicas de uma grande cidade.

Abaixo, para degustação, um trecho do conto.

Neste ponto da história, cansado de ser desprezado, discriminado e precisando muito de ajuda, o personagem passa pela seguinte situação:

"... ao acabar de deixar a igreja, um moço muito bem apessoado, usando terno e cercado de seguranças, veio sorridente em sua direção. Vivaldo mal pôde acreditar. O homem chegou bem perto, estendeu-lhe a mão e a apertou vigorosamente, puxando-o de encontro ao peito para um caloroso e demorado abraço. Naquele momento, o sertanejo pensou ter ressuscitado. Seu puro coração bateu forte de tanta alegria. “Será que ele me reconheceu de algum lugar?”, pensou o ingênuo rapaz. Suas esperanças renasceram durante aquele abraço tão apertado, tão íntimo, de quase irmão que não se vê há muito tempo. “Nem tudo está perdido”, imaginou. Essa era a ajuda de que necessitava para contar aos robôs-zumbis que eles estavam todos mortos. O moço de terno era diferente, era simpático, sorridente, solícito, talvez o ajudasse a convencer os que caminham com o olhar vago. Naquele demorado abraço, Vivaldo já se sentia quase um parente. Nunca ninguém o tratara assim, com tanta deferência, nem mesmo sua mãe, a qual nem conhecera porque a pobre reviveu para o mundo das almas na hora do parto. Ela renascendo e Vivaldo morrendo, porque morte é assim: é necessário um período de nove meses para ir se acostumando com ela, com muito vagar, de pouquinho em pouquinho vai se formando o escafandro imprescindível à morte, a fim de que o finado possa transitar pelo pesado mundo dos mortos. A morte de Vivaldo foi, assim, agravada pelo abandono já na chegada.

Abandono este que marca sua trajetória desde o início, não só a sua, como a de muitos, dependendo da sina de cada um.

O sorridente moço, então, desenlaçou Vivaldo para dar-lhe um beijo na testa e voltar a apertar-lhe a mão. “Será que estou no paraíso?”, questionou a si mesmo o humilde rapaz, mudando radicalmente suas impressões anteriores, agora se sentindo muito importante, tanto que começava até a estufar o peito e olhar os passantes com certo orgulho. Aquilo para ele era como chuva no sertão. A salvação da lavoura! Depois de soltar-lhe a mão, antes que Vivaldo pudesse balbuciar qualquer palavra, o agradável moço, retirou do bolso um grande cartão e lhe entregou, despedindo-se, mais uma vez, com um forte abraço e outro aperto de mão. O inocente rapaz ficou segurando o cartão e contemplando o portentoso moço se afastar acenando e cumprimentando a todos que lhe cruzavam o caminho.

“Viu? Nem tudo está perdido! Que moço gentil! E agora é meu amigo!”, ficou imaginando Vivaldo que ainda tinha o sorriso nos lábios e sentia o abraço apertado do amigo que, enfim, conseguira fazer na cidade grande. Ficou assim, meio embasbacado, com o cartão na mão, olhando para o amigo que, rapidamente desaparecia em meio a incessante cadência dos robôs-zumbis. Quando o novo amigo sumiu totalmente, ele ainda esticava o pescoço para acenar e sorrir, mas já não dava para alcançá-lo com os olhos. Por algum tempo ainda Vivaldo permaneceu parado, olhando para o nada, com o sorriso nos lábios, até se dar conta de que precisava retomar seu caminho. Percebeu, então, que conservava nas mãos o cartão que o gentil moço lhe entregara. Pensou que certamente seria um contato para um encontro com mais privacidade. Olhou depressa para o cartão, deparando-se com a foto do sorridente camarada e um número. Seria seu telefone? Logo abaixo, Vivaldo conseguiu ler em maiúsculas: 'VOTE NO MURTINHO PARA PREFEITO!'."


Palavralgia
https://ims.com.br/titular-colecao/mario-quintana/
Ontem, navegando por sites literários, acabei entrando em uma página sobre o Mario Quintana, este poeta importante da nossa literatura. Pude relembrar, então, um poeminha que havia estudado na época da faculdade e que retrata bem a alma deste incrível escritor. Reproduzo-o abaixo:

Poeminho do contra

Todos esses que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão…
Eu passarinho!


Trago este texto para o blog porque, desde os tempos da faculdade, sempre que o leio, sinto que algo se move na minha alma, provocando arrepios na pele e aceleração do coração. Alguns textos me causam estas sensações sensacionais.

Como a gente se incomoda com bobagens, não é mesmo? Bom é ter a alma leve, livre e solta, como um passarinho.

O que observa-se, neste poema, é uma brincadeira com palavras parônimas de classes gramaticais distintas. O esperado era que o poeta usasse dois verbos após os pronomes pessoais "eles e eu".  A palavra "passarão", que não significa pássaro grande, mas o verbo passar no futuro, ajuda a transmitir a ideia pesada do “ão” (porque também serve para o aumentativo). Isto, em contraposição à leveza comunicada através do substantivo "passarinho", no diminutivo, cria  o sentido poético que consegue traduzir um sentimento de suavidade e despreocupação. 

Então, pelo menos dois recursos poéticos podem ser observados:

1- A utilização de palavras gráfica e foneticamente similares (parônimas) com classes gramaticais e sentidos diferentes, provocando um efeito sonoro muito interessante, o que revela a presença da aliteração, figura de linguagem que se caracteriza pela repetição de fonemas idênticos ou parecidos.

2- A contraposição entre “ão” e “inho” transmite uma ideia de antagonismo. O substantivo passarinho já transmite uma ideia de fragilidade pela figura que representa: animalzinho pequeno e delicado. Esta palavra, em oposição ao verbo no futuro com o uso do “ão”, cria a beleza dos versos.

Isso é genialidade, comunicar sentimentos construindo estruturas vocabulares com extrema sabedoria e beleza. Isso é o que se chama de arte.


Palavralgia
http://gritaminhaalma.blogspot.com/2011/11/
Morte é uma palavra bela,
Mas há muito preconceito com ela.

Morte não é só choro, luto e tristeza,
A palavra também traz, em sua essência, beleza.

Morte é mudança, é renovação, é corte.
Morte é para quem é forte, quem diria?

É pra quem consegue
renascer a cada dia!