Palavralgia

Como diz Stephen King, no final desta página, utilizar metáforas, fazendo conexão entre coisas sem relação entre si, é uma forma de enriquecer o texto. 

Eu me identifiquei muito com isso. Embora não seja fã do gênero a que o autor se dedica, encontrei algo em comum: acho que utilizamos a mesma tal caixa de ferramenta a que ele se refere no livro Sobre a Escrita, guardadas as proporções das habilidades de cada escritor em utilizá-las.

 Adoro fazer isso nos meus escritos. E um exemplo é o texto Tudo que Move é Sagrado, escrito nos idos de 2015. Segue abaixo.

Tudo que Move é Sagrado

Às vezes somos assaltados por ideias que a gente não sabe ao certo por que nos vêm à mente.

Pois é. Dia desses fui acometida por uma imagem de escola de samba. Veio-me à cabeça uma fantasia de uma das alas da escola. A fantasia era uma só para todos os componentes da ala, ou seja, era uma vestimenta para todos os participantes entrarem nela. Parecia um imenso lençol com vários buracos por onde os integrantes metiam a cabeça. O efeito era bonito, mas limitava um pouco os movimentos dos foliões.

Agora me lembro do motivo de esta imagem me ter vindo à cabeça. O pensamento funciona de forma encadeada, isto é, uma ideia puxa a outra, que remete à outra e à outra e assim sucessivamente, até que quem está pensando se pergunte: “mas por que é mesmo que estou pensando nisso?”

Foi desta forma que a fantasia carnavalesca chegou até a minha tela mental. Uma bela imagem televisiva que trouxe todo um ciclo de encadeamento de ideias anteriores até exumar, lá do fundo, esta imagem há muito esquecida em algum recôndito escaninho da memória.

Façamos a reconstituição do circuito para chegar à sua gênese. Sempre demoro um pouco a pegar no sono. Enquanto ele não chega, minha mente vagueia e eu pensava em como às vezes é difícil nos libertarmos de uma situação, de passarmos adiante, de mudarmos de fase, como nos jogos de vídeo game. Parece que ficamos engessados. Tudo se repetindo todos os dias, até as falas parecem as mesmas. É como se entrássemos numa espécie de automatismo monótono e extenuante do qual precisamos nos desligar. Muitas vezes nos vemos presos, sem saída, a um emprego do qual desejamos ardentemente soltar as amarras, a um relacionamento que há muito já perdeu o prazo de validade. Situações a que nos vemos atados sem conseguirmos nos desprender.

De repente, um convite, uma decisão, um encontro casual, um remexer em coisas velhas faz circular as energias e dá uma reviravolta que tudo aquilo que estava estagnado se movimenta.

Quer ver uma coisa danada para fazer circular energia? Faxina. Se algo estiver emperrado em sua vida, experimenta levantar poeira, arrumar armário, mexer em coisas velhas, descartar o que entulha e ocupa espaço. Parece que ao desorganizarmos para organizar no plano material, no plano astral as energias também são removidas de seus devidos lugares formando novas configurações. Tudo se renova, se transforma. Esta é uma teoria minha. É quando mudamos de fase. Aí dizemos: “estou numa nova fase em minha vida!” E isto sempre é muito bom, até que as coisas vão tomando seus lugares, se assentando, acomodando e se estagnando novamente. Hora de empreender nova subida na montanha.

Tudo é movimento. É preciso nos alforriarmos daquilo que nos escraviza, aprisiona, engessa e que somente mantemos em nossa vida por puro comodismo ou porque esperamos que algum milagre aconteça. Assim, nós mesmos nos acorrentamos a situações, relacionamentos, condições profissionais, desejando que algo de novo aconteça. Desta forma, parece que somos nós os integrantes daquela ala da escola de samba, cuja imagem me veio à mente. Dezenas de bonequinhos indistintos, só com a cabecinha para o lado de fora, presos uns aos outros por um tênue tecido que lhes tolhe os movimentos e limita a evolução.

Não raro, gastamos muito tempo na vida pensando: “como é que eu vou sair dessa?” A gente perde noites e noites de sono e não encontra a solução!

Mas, como tudo é movimento, tudo é cíclico, tudo passa, quando nos damos conta, a fantasia já é outra, já mudamos de ala, já passamos de fase.

Às vezes, é preciso mesmo aguardar que o destino se cumpra. Contudo, é imperioso lembrar que “tudo que move é sagrado”. Por isso é importante este movimento de trocar de fantasia, de “remover as montanhas com todo cuidado” e de abrir as janelas para nos alimentarmos de horizontes.
Palavralgia

Estou lendo Sobre a Escrita – A Arte em Memórias, do Stephen King. Eu também me espantei porque, afinal, este autor escreve romances de terror. Sim! Contudo, fui surpreendida com uma obra deliciosa, meio autobiográfica, em que King fala não apenas sobre seus processos de criação, mas, dentre outras coisas muito interessantes, dá importantes dicas sobre a produção textual.

No decorrer do livro, o autor menciona que é preciso saber sobre o que se está escrevendo e que a escrita deve vir do coração e mexer com as emoções do próprio escritor em primeiro lugar. Ao ler isto, meu coração acelerou porque me fez lembrar do quanto escrever “A Arca” me tocou. É um dos textos de que mais gosto e talvez seja o que mais me emocione. Até hoje, quando leio esta crônica, escrita em 2010, fico comovida. Por isso, escolhi esta pérola, da minha lavra, para compartilhar hoje.

Fique à vontade para deixar suas impressões. 


A ARCA

A minha casa caiu, desmoronou por inteiro. Não foi tempestade, nem vendaval, caiu por abalo nas estruturas antigas. Eu caminho pelos escombros buscando alguma coisa de valor, mas nada aqui parece passível de salvação.

Lembro-me, então, de quando brincava de casinha sobre o frio cimento do chão do corredor que separava as minhas duas casas. Na casinha da brincadeira não havia corredor. Na casa de dormir, não tinha geladeira. No fogão, só poeira e no forno as aranhas construíam suas próprias casas. Escoradas na pia da cozinha, duas bicicletas enferrujadas. Em frente a pia, uma grande arca de madeira clara. Dentro dela, um bule amarelo com tampa preta e seis xicrinhas arredondadas, uma delas sem asa. O bule também era povoado. Em meio à louça, dentro do móvel, uma imensidade de livros intocados. Sobre a arca, a vitrola cor de abóbora e algumas imemoráveis quinquilharias. O tesouro da arca era a vitrola e os livros intocados que, até então, serviam de abrigo e alimento às traças. Os livros são passíveis de salvação. Eles me iniciaram na poesia. O tesouro da arca me abria o universo, me fazia imensa e sem temor de conviver com os seres alienígenas àquele mundo. Na verdade, eu era o ser estranho àquele universo povoado por traças, aranhas, baratas entre louças e livros, muitos livros.

Certa tarde, sentei no chão empoeirado da cozinha e puxei lá do fundo da arca um livro grosso de capa branca. Abri o livro, retirei as traças, moradoras antigas daquela página e descobri uma palavra: agropecuária. Foi a primeira vez que vi esta palavra, ela invadiu meu universo, como eu invadi a arca com as louças e livros que constituíam o mundo pacífico dos insetos. Folheei o livro que continha vários mapas com legendas riscadinhas.

Jamais pensei em limpar e organizar aquele mundo. Acho que com isso aprendi um pouco a lidar com as inconveniências e com as coisas que incomodam. Cresci sem medo de baratas e com a certeza de que não é possível viver num mundo perfeito. Mesmo assim, o mundo é passível de salvação. Os livros da arca me resgatam lá do fundo dos escombros.

Ainda guardo algumas palavras do antigo poema que encontrei em um dos livros da arca do tesouro: “ao perder-te eu a ti, perdemos tu e eu...”, não me recordo a autoria, mas os versos propiciam profundas reflexões sobre perda, destruição e transformação. Somente agora entre os escombros, encontro o traçado que orienta os habitantes a respeito do local que habitam. Isso não consta de nenhum mapa. É entre proteção e abandono que construo a minha casinha de brinquedo no frio corredor que separa as minhas moradias. Tudo é ganho.

A casa de dormir era menor que a casa de comer e só o quarto funcionava, todo o resto ficava entregue às traças, aranhas, baratas e à minha infinita curiosidade. Eu e todos aqueles não tão amigáveis insetos éramos os habitantes daquele mundo.

Na casa de comer, o principal habitante era o sol, ficava do outro lado do corredor. Era para lá que eu ia todos os dias tomar o café da manhã. A casa de comer era grande, tinha jardim e o fogão, a geladeira e tudo mais funcionavam perfeitamente. Os insetos, se aparecessem por lá, eram realmente considerados intrusos, caçados e sacrificados, coitados! Na casa de comer não havia lugar para abandono. À tarde, era na cozinha empoeirada da casa de dormir que eu me encontrava, explorando os objetos da arca e os livros empoeirados e corroídos. Eu conversava com os insetos. As traças e as aranhas diziam muito sobre aquele mundo que eu virava e revirava. Cada tarde, uma descoberta, não sobre o abandono.

A casa de dormir era noturna até durante o dia, o silêncio morava nela, mesmo quando eu estava explorando a arca, em cima da qual, ao lado da vitrola cor de abóbora, havia um pequeno altar improvisado. De manhã bem cedinho, quando eu ainda estava na cama, ouvia reza sussurrada.

Nas tardes que não ia explorar a arca, eu brincava no jardim da casa de comer ou de casinha no corredor que separava as duas casas. Não sei, ao certo, à qual das duas pertenço. É nos escombros que encontro poesia. Há muitas histórias no abandono e nas coisas sem uso. Assim eu penso observando o bule amarelo de tampa preta que nunca foi usado e divide espaço com os insetos e com os livros na arca. Ali também está o altar. Eu olho para ele curiosa, mas não toco em nada e ele também não me toca. É dentro da arca que está o meu tesouro. São os livros corroídos que contam a minha história e a história que quero contar.

Muitas vezes pensei em como seria ver o bule amarelo sobre a mesa do café da manhã, rodeado por suas xícaras arredondadas e pelo açucareiro bojudo. O que seria das aranhas que moravam lá? Onde encontrariam nova moradia? O café na casa de comer também só era servido em xícaras quando tinha visita especial, mas não no jogo do bule amarelo, ninguém se lembrava dele. Sorte das aranhas.

Tudo desabou e eu nem percebi, quando dei por mim, já estava revirando os destroços na tentativa de encontrar alguma coisa que se salvasse. Eu também faço parte das ruínas, mas o que pode ser salvo não está em parte alguma, muito mais próximo, porém, do que se possa imaginar.


Palavralgia
Salvador Dali 
Mulher na janela em Figueres,
1926 — óleo sobre madeira
Janela, uma palavra tão bela!
A minha poesia é feita
do vento que entra por ela.

A ventania traz a chuva
Que me apanha sentinela.

Pela chuva, a janela me atravessa
E a poesia encharcada, aos sussurros, se confessa.

Janela, o vento que entra por ela,
Bafeja, aos lufos, a poesia
Que para mim se revela.