Palavralgia
Pra conjuntura?
E pra desconjuntura?
Pra descompostura?
Pra usura?

E pra ruptura?
Tem cura?
Pra jura?
Pra dita dura?

E pra gastura?
Pra agrura?
Pra vida dura?
Tem cura?

Pra conjectura?
E pra arma dura?
Pra rapadura?
Pra cabeça dura?

E pra essa mistura?
Tem cura?
Pra fissura?
Pra rachadura?

Pra caricatura?
Pra atadura?
E pra gordura?
Tem cura?

Pra anticultura?
Pra vida insegura?
Tem cura?
E pra dentadura?

Pra cara dura?
Pra loura burra?
E pra frescura?
Tem cura?

E pra essa criatura?
Pra feiura?
Pra quem vai de viatura?
E pra toda essa loucura? 

Tem cura?
Palavralgia
Onde está o sentido de todas as palavras?
Onde estão todos os sentidos?
Por que estamos na posição de sentido?
Ou estamos na imposição sem sentido?
Com que estamos sentidos?
Do que estamos sem?
O que não temos tido?
Onde não temos ido?
De quem não temos dó?
A que dizemos, Oh!
Palavralgia
Sou expectadora
Quase inconsciente,
Quase consciente,
Dos sentimentos
Que afloram em mim.

Palavralgia
No vazio da boca
Toda intenção,
Mas também a omissão.

No vazio da boca
A prudência,
A não violência.

No vazio da boca
A fome,
A palavra que some,
O silêncio que consome.

No vazio da boca
O inaudível,
O invisível,
O indizível.

No vazio da boca
O pensamento,
O consentimento.

No vazio da boca
A falta de diálogo
Que põe fim às relações.

No vazio da boca
A opção,
A indecisão.

No vazio da boca
A solução,
Pelo sim, pelo não.

No vazio da boca
O desejo
O ensejo.

No vazio da boca
Dentes e sorrisos amarelos
Retratam tudo o que há no vazio.

No vazio da boca
Tudo pode acontecer,
Até a palavra morrer
Antes mesmo de nascer.

No vazio da boca
O limite é o céu.
Qual é o seu?
Palavralgia
Eu não sou livre
Porque sinto fome.
A fome escraviza
Porque impõe a comida.
Ou come, ou morre.
É mais ou menos um
“dá ou desce” ou
“a bolsa ou a vida”.
Então, se correr o bicho pega,
Mas, se ficar, é o bicho que come! 

Não existe liberdade
Na necessidade.
Eu necessito.
Por isso não conheço
A liberdade, nem a Fome.

Quem não come
Necessita
Mas se liberta
Pela simples falta de alternativa,
Pois quebra as correntes da
Necessidade imposta,
Sai do ciclo vicioso diário.

Contudo, a falta de alternativa
Também é prisão.
Bom mesmo será alcançar
A liberdade por opção.

Aí não haverá mais fome
E as alternativas
Não mais se escassearão
Porque quem não come,
Jamais será comido.
Palavralgia
Quem dá língua
Faz careta.
Mas careta mesmo
É quem não faz
Melhor uso da língua!
Palavralgia
O que é a felicidade?

A felicidade é algo que passou
E de que agora sinto saudade.

Quando ela passava por mim (ou eu por ela),
Não a reconheci,
Não me dei conta,
Não dei valor,
Deixei-a escapar, sem suspeitar.

Só agora percebo
Que convivi com ela
Naquele dado momento,
Que já não posso alcançar.

E agora,
Depois de sua partida,
Feliz sou ainda
Ao reconhecer que,
Embora irreconhecida,
A felicidade
Fez parte da minha vida.


Palavralgia
Hoje você conheceu um pouco do meu mundo,
Que não é feito só de belezas.
Porque o mundo em si tem mais gente que carece.
Por isso, não é possível fingir
Que se vive em outro mundo.

O meu mundo é este.
E este é o mundo de todo mundo,
Por mais que se tente criar mundos ilusórios
E transitar sob suas ofuscantes luzes artificiais.

À luz do dia, o mundo se mostra com todas as suas cores.
É um equívoco tomar-se, metonimicamente, a parte pelo todo.
O mundo é um só e com tudo dentro,
Não por acréscimo,
Mas simplesmente porque o mundo é mundo,
Cheio de luzes,
Que invariavelmente se apagam.
Palavralgia
Os pés mastigam o chão
Ao gosto de cada passo.
Vão degustando as direções e
Amargando o sabor da estrada.

Estrada tantas vezes devorada
No afã da chegada
E tantas vezes devolvida
Na lágrima vertida.

Devolvida aos soluços sem solução
Porque partida
É repartida:
Metade fica
E metade quer ficar.
Palavralgia
Eu já estive aqui, mas não trouxe a minha alma. Hoje ela veio comigo, por isso consigo enxergar através das paredes, dos objetos e das pessoas. Talvez por essa razão, tudo me pareça tão diferente. O caminhar vazio esvazia os caminhos de significados. Portanto, é imprescindível buscar a alma onde quer que ela esteja. Por mais árdua que seja esta busca, é preciso trazê-la de volta e não deixá-la mais escapar. Tudo que se faz com alma é sempre melhor. O que se vê são milhões de corpos andando vazios, carentes de espírito. É necessário promover o encontro de corpo e alma, a fim de que seja possível almejar atingir o verdadeiro sentido da vida.
Palavralgia
Jamais é oco, vazio por dentro; o que não é já, o que não é mais, o que já não é, sem jamais ter sido.

Jamais não atende aos imperativos intensos do instante já, porque contraria, com a ordem ortográfica, os apelos semânticos. Despindo jamais do sentido primeiro, verifica-se que ele pode ser, por exemplo, uma súplica de tempo: é preciso mais já, mais agora, mais momentos, mais instantes. Se assim fosse, eu não o deixaria desnudo de todo, estaria usando um pouco da minha habilidade de estilista para vesti-lo, ou melhor, revesti-lo com estilo já mais próprio.

Já em sentido próprio, jamais pode ter todo tempo e nenhum, ao mesmo tempo. Pode ser a negação infinita. Não que isso seja ruim, dependendo do que seja negação.

De qualquer forma, jamais é vazio. Mas é preciso ter cuidado com o emprego, porque “jamais é vazio” pode significar que é cheio, ou pelo menos que tem algum conteúdo. E achar algum conteúdo no que se pensava vazio, pode ser muito interessante.

Aí desaparece o jamais, que é oco, para dar lugar ao recheado.

Jamais oco ou jamais recheado? É preciso ter cautela, porque um pode ser o outro e ou outro pode ser o um.

Tudo é possível.

Palavralgia
De repente está tudo tão tedioso,
Ao som de mim mesma.

O meu é um silêncio alongado, esticado,
E é silencio mesmo quando está quebrado.

O meu silêncio é como um fio condutor;
Mesmo que se quebre por fora,
Ainda é silêncio no interior.

Palavralgia
Quando amanhecer,
Já haverei partido
Para os saudosos, verdejantes e  ensolarados
Sítios de atrás,
Onde não existe nunca mais.
Palavralgia
O poeta nasce após nove meses de gestação,
Mas é um ser diferente.
Nasce com olhos que ouvem,
Ouvidos que enxergam e
Mãos que falam.
Respira por todos os poros,
Traduzindo tudo em palavras que
Encaixam-se numa perfeição divina
Perpetuada pela eternidade.
O poeta é o único ser que
Contraria os princípios evolutivos da humanidade
Porque ele nasce, cresce e não morre.
Palavralgia

Palavralgia
Em certo momento da caminhada,
Interminável clareira me atravessa
Em meio à plena verdura florestal.
Tudo é silêncio.
Nenhum movimento.
Só o não,
A cada pedaço de chão.
Chão sem caldo, sem recheio,
Cheio de pó e de pé.

É assim
Que o deserto anda em mim.

Palavralgia
Chove lá fora. Aqui ao lado escuto um choro torrencial. Os raios iluminam o céu. Os estrondos de trovões confundem-se com gritos, discussão e um choro convulsivo, sufocante. Vozes se alternam em alto volume. Os trovões retumbam. Portas batem. Mais gritos, acusações e choro, o barulho do elevador e, em poucos segundos, pneus cantam na chuva. De repente, nada! O silêncio.

Fiquei aflita e consternada por ouvir tudo isso. Imagino o que se passa agora pela cabeça de cada um. Ela, aos soluços, dirigindo na chuva noturna. Ele, em casa, no mais profundo silêncio.

O mar está de ressaca. Talvez o casal tenha bebido, foi o que me ocorreu. Mas era improvável.

No dia seguinte, no mesmo horário, à noitinha, novos barulhos. Desta vez, adolescentes cantam alegres na varanda e conversam festivamente, no mesmo ambiente que havia servido de palco para outra encenação na noite anterior.

Talvez estes adolescentes, na hora da tormenta, estivessem em seus quartos ouvindo, como eu, toda a tempestade, mas como diz a cantora Ana Carolina nos sábios versos da sua linda canção: “a vida sempre continua...”

A tempestade havia passado. Dias depois, ouço a mulher conversando normalmente com o homem com quem havia berrado dias atrás. As nuvens se dispersaram. Mas as tormentas sempre deixam marcas e, dependendo da intensidade, marcas profundas, de difícil recuperação.

Árvores ainda se encontram nas pistas. O asfalto está avariado em vários pontos. Pontes caíram. Os motoristas devem tomar cuidado. Vai dar trabalho para recuperar. A paisagem será modificada em alguns trechos, avisam os noticiários.

A paisagem nunca será a mesma, após uma tempestade catastrófica. Elas sempre deixam marcas e lembranças dos flagelados.

Somos flagelados de nossas próprias tempestades. Muitas vezes conseguimos remendar nossas trajetórias e seguir em frente, ainda que com árvores pelo caminho e rios caudalosos, com suas pontes caídas, a serem atravessados.

Porém, nem sempre é assim. Às vezes sucumbimos na travessia.

Precaução é a palavra mais correta. Quem se protege da tempestade, corre menos perigo.

Às vezes, num momento de desespero, uma atitude impensada pode nos marcar profundamente e as pessoas que nos cercam para o resto da vida.

Haverá sempre árvores, pedras, obstáculos de todo tipo a serem ultrapassados e rios caudalosos para atravessar. A prudência e a precaução sempre serão bons instrumentos de que podemos lançar mão para auxílio na travessia.

Apesar das tempestades intempestivas e apesar de nós, a vida sempre continuará. Então para que se arriscar?

É isso aí!
Palavralgia
Para fisgar orgulho,
A gente tem que pegar mania
De desimportante.

Falo isso em referência aos barros
de que são feitos os
Brinquedinhos de palavras do
Manoel.

Mistura de terra
Com águas de rio
E de chuva
Traduzida em cheiros,
Cores e seres comuns
A estes terrenos.

Tudo transformado em
Brinquedos
Com que a gente se
Deleita e se enche
De encantamentos.

(Homenagem a um dos meus poetas preferidos: Manoel de Barros)
Palavralgia

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Palavralgia
Tem um resto de mim,
Que deixei para trás,
Derramado ali no chão.
Devo voltar,
Juntar tudo,
Pegar de volta e
Correr depressa,
Antes que seja
Tarde demais!
Palavralgia
E ele já nasce cansado de ser jovem.

Um velho árvore de onde brotam poemas maduros,
Poemas de vez em quando,
Poemas tenros ainda, ásperos, azedos, doces,
Os enraizados, os arrancados
Os troncudos, os floridos, os cheios de ramos
Os derramados pelos vendavais,
Os que resistiram a temporais,
Os regados pelos orvalhos matinais,
Os que ainda não desabrocharam
Os que morreram ainda em botão,
Os que nasceram por teimosia,
Os que sempre precisam de adubo.

Tem um velho nascendo em mim
Entranhado desde criança
Um velho que adora amenidades
Mas com alguma coisa dentro
Porque amenidades puras
São difíceis de engolir.

Tem uma árvore dentro de mim,
Cultivada desde a semente,
Pelo velho entranhado
Mas que agora, cresce descontroladamente
E coloca os galinhos de fora,
A saírem boca afora
Cheios de ramos, folhagens e flores,
Desengolidas amenidades impuras,
aromas, amores e temores.

Ela cresce a olhos vistos.
Olhos, ouvidos, nariz e garganta afora
Escancaradamente,
Escancarada mente
Dilacerando a maternidade.

Mente que crescerá amena
E o velho, que adora amenidade,
A cultiva com pueril ingenuidade.
Palavralgia
Todos nós fomos meninos,
Brincamos de pique e de bola,
Fomos à escola,
Fizemos nossos destinos.

Hoje dirigimos as escolas,
Grandes empresas e até países.
Influímos no e decidimos o
Futuro das pessoas.

Somos médicos, enfermeiros,
Advogados, professores, engenheiros,
Guerreiros da guerra e da paz
Amados, desarmados,
Armados e “desamados”
Sempre amados e amadores
Com dores, amores, desamores, dissabores
Que nos tornam indefesos
E nos fazem tão meninos,
Tão crianças, tão iguais.

Palavralgia
Escolhi o vocábulo
Melancolia para dissecar.
Cortei um primeiro pedaço e
Encontrei mel,
Prossegui o intento e
Descobri lia, pretérito imperfeito
Do verbo ler e
Come, de comer.
Continuei retalhando e
Misturando os pedaços,
Achei alia, de aliar;
Mela, de melar;
Cola, de colar;
Ame, de amar
E também ela, eco, ema, lema.
Neste processo, avistei além.
Vendo além, compreendi
Que um corte na melancolia
Pode desvelar muitas possibilidades.
Prosseguindo o exercício,
Decerto seja possível
Encontrar ainda muitas novidades.
Palavralgia
Quando amanhecer,
Já haverei partido
Para os saudosos, verdejantes e ensolarados
Sítios de atrás,
Onde não existe nunca mais.
Palavralgia
Vivo de delícias escaldantes.

Ando sob o sol,
O suor me lava a alma.

Renasço das cinzas e
Alço voos estonteantes
Sem medo de que o sol
Me derreta as asas.

O calor me aquece os sentimentos.
Boto lenha na fogueira
Para não deixar esfriar.

Preciso manter a energia, a chama,
Sou ariana
Não posso deixar apagar!
Palavralgia
Existe uma sufocante falta de espaço no eu.
Mas isso somente acontece porque o eu
Ocupa muito espaço.

Para sair do sufoco,
É necessário que o eu se submeta
A um rigoroso regime de
Desentulhamento.

Mais enxuto, o eu
Respira melhor,
Sai do sufoco e
Não sufoca ninguém.
Palavralgia
Às vezes é necessário entrar no porão para ver o que anda esquecido por lá.

O meu porão está cheio de coisas que eu nem sabia existir, porém fui eu mesma que as deixei ali. O acúmulo me obrigou a descer ao porão, porque, sem perceber, fui jogando muitas coisas e elas foram ficando umas por cima das outras, abarrotando o espaço e tornando difícil encontrar o que é preciso, mesmo o que seja impreciso.

Tarefa árdua a de entrar no porão e ter que se deparar com coisas até desconhecidas ou irreconhecíveis. Mas é preciso descer ao porão, remexer tudo, olhar para todas as coisas que lá se encontram, com o objetivo de lhes dar o devido destino. Tem coisas que, não têm jeito, vão ficar no porão. Um dia será preciso lançar mão, nem que seja para jogar no lixo.

Meu porão tem chão e teto, tem dimensões e referências, por isso não dá para se perder, apesar da dificuldade de se achar, por causa do entulho que transborda.

Não é muito bom entrar no porão, porque é empoeirado, escuro, sombrio e cheio de habitantes peculiares a estes tipos de ambiente. Contudo, é preciso ter consciência de que faço parte dele. Tudo que ali se encontra pertence a mim, ao meu passado, aos meus antecedentes, à minha história. Tudo está relacionado.

O interessante é que escondemos, às vezes até sem nos dar conta, coisas preciosas no porão. Eu me surpreendi ao lá encontrar verdadeiras joias.

Enquanto tateio e tento me equilibrar caminhando entre objetos, teias e insetos, que amedrontados, fogem e se escondem entre as quinquilharias, deparo-me com uma máquina de coser antiga da minha avó que, com toda certeza, fez muitas costuras e remendos antes de vir parar no porão. É engraçado falar “coser”, no meu porão encontro estas palavras.

Foi providencial encontrar a antiga máquina da minha avó, talvez precise recuperá-la e colocá-la para funcionar, pois ainda há muitas coisas que preciso costurar e remendar.

Por falar na minha avó, ela adorava roseiras. Cultiva-as com muita dedicação no jardim de casa. Todos os dias, ia olhá-las, conversava com elas, que cresciam viçosas e retribuíam num desdobrar lento e perfeito de pétalas, desabrochando em verdadeiras obras de arte em forma de rosa. Isso fazia minha avó feliz.

Eu achava esquisito minha avó comprar minhocas e cocô de cavalo no carroceiro para colocar nas roseiras.

Minha avó faz parte do meu porão. A antiga máquina de coser empoeirada me fez encontrá-la com suas roseiras. As minhocas fazem bem para as roseiras, servem de adubo. Sem elas, a terra não respira e as roseiras não crescem como deveriam.

Encontrei também uma enxada enferrujada. Ela pertencia ao meu avô. Eu achava engraçado o meu avô trabalhar no banco de carpinteiro, tendo um lenço de bolso na cabeça com nozinhos nas quatro pontas. Ele dizia que era para se proteger do sol. Era ele que, com a enxada, cavava buracos no jardim para colocar as minhocas nas roseiras da minha avó, sempre com o lencinho engraçado na cabeça.

O banco de carpinteiro também será recuperado, utilizarei na minha oficina de versos.

Até me esqueço dos insetos e bichos que moram no meu porão, ao encontrar o lenço amarrado nas quatro pontas, que pertenceu ao meu avô. Como disse, o porão não tem só insetos e coisas inúteis, guarda verdadeiros tesouros. Este lencinho amarrado é uma preciosidade. Traz cheiro de sol, suor e rosas. Traz cheiro de infância ao meu porão, renova a atmosfera e faz meu coração bater acelerado de felicidade. Diante do lencinho, é como se eu estivesse vendo meu avô encurvado ao redor das roseiras, sob a rigorosa inspeção do par dos inesquecíveis olhos azuis da minha avó. Este olhar ilumina o meu porão.

Dia desses, fui surpreendida pela pergunta de um menino lá da comunidade: “Tia, na sua casa tem piscina de chão?” A princípio, não entendi muito bem o que seria uma piscina de chão, mas logo me veio à mente os banhos de mangueira na biquinha do jardim da minha casa de infância. Muitas vezes,  me peguei imaginando o espaçoso retângulo em que minha avó cultivava suas roseiras, transformado em uma maravilhosa piscina. Logo, então, compreendi o que quis dizer o menino de sete anos. Para ele, piscina de chão significa não ser de plástico. Assim como eu sonhava em transformar o canteiro da minha avó em piscina, ele também sonhava em trocar a velha piscina de plástico para entrar, pela primeira vez, numa piscina de verdade. O menino da comunidade, com sua singela pergunta, nem imaginava que me faria encontrar a minha piscina de chão. Embora ela nunca tenha existido de verdade, apenas nos desejos e sonhos de menina, pôde agora ser recuperada no meu porão.

Tudo isso me fez decidir  uma coisa inusitada, muito inspirada pela máquina de coser da minha avó e pela enxada enferrujada do meu avô, que também será recuperada para cavar um buraco no chão do porão, ali, bem no meio de todas as coisas, onde plantarei uma roseira. Não vou precisar comprar minhocas, elas já existem por lá, são bem vindas para a roseira que vai brotar.

O meu porão tem chão e teto, tem dimensões e referências. A roseira será uma grande referência no meio do porão. O lencinho do meu avô com seu cheiro de infância e a luz dos olhos azuis da minha avó arejam, renovam a atmosfera e  iluminam o ambiente onde verei crescer minha roseira.

Não sei por que resolvi entrar no porão. Nem pensar em fazer faxina geral! É impossível. Apenas rever o que lá existe, mudar algumas coisas de lugar, arejar o ambiente e saber que, de uma forma ou de outra, incomodando ou trazendo gratas lembranças, tudo o que ali se encontra é meu. Portanto tenho plena liberdade para lidar com todas aquelas coisas, dando-lhes bom destino e modificando o ambiente da forma que me aprouver.

Escolhi manter o porão intacto, sem jogar nada fora e aprender a lidar com a penumbra, com as sombras, com os bichinhos, com a poeira e, em meio a tudo isso, descobrir tesouros impagáveis, que tornam o meu porão um lugar de lembranças e transformação, mas, sobretudo, um lugar de recuperação. 
Palavralgia
Sempre e nunca são tão impermanentes
Quanto mentira e verdade.
A impermanência é o que liga
A mentira, o sempre, a verdade e o nunca.
Por isso, nunca mentir é tão fugaz
Quanto sempre dizer a verdade.
Assim continuamos com as mentiras de sempre
E as verdades de nunca.

As verdades de nunca
São aquelas que não queremos enxergar,
Que não aceitamos; e são as mesmas de sempre;
As mentiras de sempre,
Cada um sabe as suas,
Embora nunca se admita
Serem suas de verdade.
Palavralgia
Eu não tenho nome.
Nasci assim, sem identidade,
Sem ente, sem dente, sem idade.
Me animo sozinho,
Ninguém me chama
E ninguém extingue a chama,
Porque ela já nasce extinta de chamado.
Não é preciso.
A imprecisão é a distinção
Do que nasce extinto,
Sem tintas, sem letras, sem nome.
No anonimato, toda a invisibilidade,
Toda a transparência,
Toda a indigência,
De toda gente sem...
Palavralgia
Hoje o caderno gueri-gueri deu a luz,
Após mais de um ano de trabalho de parto.
Mas as terras desérticas
De suas páginas em branco
Precisam de lavragem
A fim de que se possa colher frutos nestas paragens.

Mesmo no deserto pode haver flores,
Mas é preciso abrir sulcos em linhas, cavar fundo
Para tornar o terreno fecundo.

Singra sulco sangra
E molha a terra tórrida
Para arrancar do ventre dorido
Os frutos, filhos da dor
Que fazem brotar no árido espaço
O que é o desejo do autor.
Palavralgia
Em certo momento da caminhada,
Interminável clareira me atravessa
Em meio à plena verdura florestal.
Tudo é silêncio.
Nenhum movimento.
Só o não,
A cada pedaço de chão.
Chão sem caldo, sem recheio,
Cheio de pó e de pé.

É assim
Que o deserto anda em mim.
Palavralgia
O que me escapa são os olhos, não o olhar.
O que me foge é o cérebro, não o pensar.
O que me passa são os pés, não os caminhos.
Eu passo as mãos, mas as mãos também me passam,
Não os feitos.
O que me escapa é a boca, não a palavra.
O que me foge são os verões, não os amores.
Tudo que é finito em mim me escapa,
Mas a chama jamais se apaga
Porque perdura ao infinito
Enquanto o infinito perdurar.
Palavralgia
Sou uma estrela híbrida
Porque possuo dupla condição estelar.

Uma me foi conferida
Por ter nascido neste planeta
Fruto de uma explosão de estrela
De onde retiro todos os minerais que
Correm em minhas veias
E constituem meu corpo,
Que é todinho formado do pó
Proveniente da explosão
E, não por acaso,
Também tem formato de estrela.

A outra condição tomo emprestada
De uma estrela de quinta grandeza
Com que tive a sorte de me deparar nesta vida
A qual me deu nome e me fez brilhar.

Apesar desta dupla condição,
E de todo este brilho
Sou uma estrela solitária
Em permanente busca
De preencher espaços
Porque sou uma estrela cheia
De espaços vazios.

A hibridez permite
Que eu transite livremente
Entre dois ambientes
Completamente incompletos:
Aquele onde vivem todos os seres e
Aquele onde só vivem os poetas.

Humanidade e poesia
Misturam-se para dar vida a um ser,
Que, como qualquer outro,
Precisa encontrar seu espaço.

Afinal, o espaço é o habitat de todas as estrelas.
Palavralgia
Amigo visitante, é muito importante, para quem escreve, ver os comentários de quem lê. Por isso, não hesite em expressar as impressões que o texto causou em você.


Obrigada,


Áurea Stela
Palavralgia
Transborda, aos pouquinhos,
Um resto de mar
Que ainda há em mim.
Palavralgia
Pedaços de pedaço.
Cada hora, outra hora,
Outro lugar, outro pedaço.

Pedaço continuado,
Estreito, perfeito
Um lado em busca do seu verso,
Pedaço de poesia.

Pedaço de espaço
Detentor de um momento,
Do tempo, outro pedaço.

Tempo em dois mil fragmentos,
Pedaços despedaçados,
Desarrumados, desagregados, perdidos,
Compondo mais um pedaço
De história, de vida, de morte, boa sorte!

Espaço é ocidente,
Tempo é sol nascente,
É aurora,
Outra hora no oriente,
Escuridão,
Que é o mesmo tempo do clarão.
Que confusão!

Pedaços de mim, um pouco de tudo,
Um pedaço de nada,
Uma palavra da minha lavra,
Meu passo, onde passo
Dona do pedaço.

Pétala íntegra
Pedaço de cor
Que ao espaço entrega
Mas o tempo desintegra.

Pedaço é pé,
Pedal, rodapé
Engrenagem, rolagem, rotação,
Que liga aos pedaços
O tempo e o espaço
Da história e da memória.

Espaço concreto, um teto.
Abstrato, um traço esguio,
Da imaginação espaço aberto.
Sem um pedaço,
Coração, espaço vazio.

Espaço é onde o sol chega
E de onde ele se despede,
Branco e preto cores do tempo.
Retrato, um pedaço de um instante,
Na estante.

Tempo e espaço,
Dois elementos unidos na abstração concreta do acaso.
Um caso, da história um pedaço.

Hora de, num breve espaço de tempo,
Juntar os pedaços,
Para a contínua procura do que falta.

(escrito em 23/03/1999)
Palavralgia
Era para ser apenas mais um inseto, destes que a gente esmaga com o chinelo. Mas não, todas as luzes dos holofotes do mundo se viraram para ele, que se transformou no mais famoso invertebrado do Universo. Não é pouca coisa, não. Não é da hora, mês, ano, década ou século, é do milênio. Mais conhecido por um nome que nem faz parte do nosso vocabulário, pelo menos não fazia. Quem não ouviu falar no bug do milênio? O estrago que este bichinho desprezível causou foi muito maior pelos boatos e especulações pré-virada do milênio, que propriamente pelo que aconteceu de real com a entrada do ano 2000.

Agora o papo já é outro. O bug agora somos nós, que viramos uma espécie de parasita planetário a ameaçar a harmonia, estabilidade e sobrevivência do planeta. Parece que esta é a profecia que está causando pânico coletivo desta vez. De acordo com o calendário Maia, o fim do mundo chega no ano 2012.

Parece incrível que, de ameaçados pelo bug do milênio, passamos a ser o próprio bug a ameaçar os milênios porvindouros do planeta, que já reage de forma mais que ostensiva contra esta infecção.

Pensando desta forma, comecei a me imaginar como um bug, um inseto insignificante, mas ameaçador (e ao mesmo tempo ameaçado). Isto dá para refletir muito. Será que eu sou uma praga do planeta? De que forma eu contribuo para que a profecia dos Maia se concretize, mesmo que não seja em 2012?

O bug do milênio e todas as profecias relacionadas ao final do século XX estavam vazias de fundamentos, mas tiveram conseqüências.

Eu considero interessante essa ótica que nos faz ver a nós mesmos como bugs, isso sim traz conseqüências desastrosas e nos coloca mais no papel de ameaçadores que de ameaçados, embora devamos entender que quanto mais ameaçadores, mais ameaçados estamos. Isso também me faz lembrar do filósofo inglês Thomas Hobbes com “o homem é o lobo do homem”.

Na verdade, à medida que o tempo passa, tornamo-nos mais ameaçados, que ameaçadores, em função do aparecimento das conseqüências de nossas ações. Creio que os holofotes do mundo, em vez de focar bugs virtuais, boatos e profecias, devem colocar cada um de nós no foco da questão. Este é um exercício que pode contribuir bastante para o esvaziamento de profecias e boatos sem fundamentos, para colocar uma lente de aumento sobre a verdadeira e única questão que realmente ameaça a nossa sobrevivência sobre o planeta: nós mesmos.

Pensando desta forma, encontraremos a verdade do vazio, já que todo boato tem um fundo de verdade, mesmo que seja um “fundilho”, o qual deve ser o nosso objeto de pesquisa e preocupação e não o boato em si.

Assim, nos preocuparemos menos com boatos e profecias, para refletir mais sobre nossas próprias atitudes ou falta delas, o que, aliás, pode trazer conseqüências muito mais ameaçadoras que um simples inseto no sistema.

A gente não gosta de se identificar com insetos, estes seres invertebrados e asquerosos, não é verdade? Mas talvez a profecia dos Maia não se concretize nem em 2012, nem em ano algum, se abandonarmos a postura parasita em relação ao nosso planeta.

Apenas boato ou apresentando um fundo de verdade, estas profecias sempre têm algum efeito, mas, acima de tudo, servem para mostrar a nossa puerilidade diante de assuntos que nos fogem à compreensão. Por outro lado, também evidenciam nossa comodidade, nosso lado parasita, em relação a assuntos que já podemos compreender e, mais ainda, ampliam nossa visão para conseguirmos enxergar o mais difícil de tudo: o quão pequenos somos e o quanto ainda precisamos crescer para termos maturidade suficiente no tratamento de assuntos relevantes, com ideias relevantes, deixando medos injustificáveis de lado, para encarar as questões com menos infantilidade e mais amadurecimento.

Se ampliarmos a nossa ótica, veremos que, em relação ao nosso planeta, na condição atual, não passamos mesmo de pequeninos bugs causando inúmeros erros no sistema (acho que dá até para dizer Solar) e neste caso, não é preciso profecia. O que se faz realmente necessária é uma conscientização do nosso papel enquanto cidadãos do Universo, a fim de que possamos atravessar os milênios, de geração em geração, deixando sempre um legado de profundo respeito ao mundo que é a casa da Humanidade. Afinal, somos humanos ou não?

Diante de qualquer boato ou profecia, não há o que temer, se tivermos em mente que não queremos ser bugs a provocar erros no sistema. Também não queremos ser hipócritas do “eu faço tudo certo, o outro é que faz errado”. Entre erros e acertos, existe um gap que eu daria o nome de zona de reciclagem, não sei bem se é isso, mas adoro esta palavra! É onde a gente aprende a noção de que tudo presta, tudo serve, tudo tem seu valor, tudo cumpre uma função. Neste hiato, a gente faz a “repescagem” e dá novas funções para hábitos antigos, sacode a poeira de atitudes enxovalhadas, renova pensamentos arcaicos, reconhece posturas tacanhas e outras que a gente nem imaginava existir. É neste espaço que a gente sai do horizonte simplificado do sim e do não, para ter visões muito mais amplas, inclusive sobre parasitas e profecias.

É exatamente neste espaço, após percorrermos infindáveis idas e vindas de um lado para outro sem sair do lugar, que finalmente podemos alcançar alguma coisa importante para nós mesmos e para o mundo. Só então, e este já é um primeiro passo, reconheceremos, sem asco, o parasita em nós.
Palavralgia
Não quero ser fera, quero ser esfera e integrar o círculo.
Quero percorrer a reta e chegar a um ponto.
Quero unir os pontos na fração de um segundo.
Quero existir e pertencer ao conjunto.
Quero inventar operações.
Não quero ser quadrilátero, quero ser “de visão”.
Quero multiplicar a ação,
Para ser “eco-ação”.
Quero ter expressão.
Quero ser a parte, quero estar no todo.
Quero ser logo, a ritmo acelerado.
Quero ter ângulo, quero ser vértice.
Quero percorrer todas as curvas e descobrir novas áreas.
Não quero ser menos, não quero ser mais, quero ser igual.
Não quero ser mais um, não quero ser menos um...
Quero ser, simplesmente, um. 
(relíquia escrita em setembro de 1998)