Palavralgia

Estou lendo Sobre a Escrita – A Arte em Memórias, do Stephen King. Eu também me espantei porque, afinal, este autor escreve romances de terror. Sim! Contudo, fui surpreendida com uma obra deliciosa, meio autobiográfica, em que King fala não apenas sobre seus processos de criação, mas, dentre outras coisas muito interessantes, dá importantes dicas sobre a produção textual.

No decorrer do livro, o autor menciona que é preciso saber sobre o que se está escrevendo e que a escrita deve vir do coração e mexer com as emoções do próprio escritor em primeiro lugar. Ao ler isto, meu coração acelerou porque me fez lembrar do quanto escrever “A Arca” me tocou. É um dos textos de que mais gosto e talvez seja o que mais me emocione. Até hoje, quando leio esta crônica, escrita em 2010, fico comovida. Por isso, escolhi esta pérola, da minha lavra, para compartilhar hoje.

Fique à vontade para deixar suas impressões. 


A ARCA

A minha casa caiu, desmoronou por inteiro. Não foi tempestade, nem vendaval, caiu por abalo nas estruturas antigas. Eu caminho pelos escombros buscando alguma coisa de valor, mas nada aqui parece passível de salvação.

Lembro-me, então, de quando brincava de casinha sobre o frio cimento do chão do corredor que separava as minhas duas casas. Na casinha da brincadeira não havia corredor. Na casa de dormir, não tinha geladeira. No fogão, só poeira e no forno as aranhas construíam suas próprias casas. Escoradas na pia da cozinha, duas bicicletas enferrujadas. Em frente a pia, uma grande arca de madeira clara. Dentro dela, um bule amarelo com tampa preta e seis xicrinhas arredondadas, uma delas sem asa. O bule também era povoado. Em meio à louça, dentro do móvel, uma imensidade de livros intocados. Sobre a arca, a vitrola cor de abóbora e algumas imemoráveis quinquilharias. O tesouro da arca era a vitrola e os livros intocados que, até então, serviam de abrigo e alimento às traças. Os livros são passíveis de salvação. Eles me iniciaram na poesia. O tesouro da arca me abria o universo, me fazia imensa e sem temor de conviver com os seres alienígenas àquele mundo. Na verdade, eu era o ser estranho àquele universo povoado por traças, aranhas, baratas entre louças e livros, muitos livros.

Certa tarde, sentei no chão empoeirado da cozinha e puxei lá do fundo da arca um livro grosso de capa branca. Abri o livro, retirei as traças, moradoras antigas daquela página e descobri uma palavra: agropecuária. Foi a primeira vez que vi esta palavra, ela invadiu meu universo, como eu invadi a arca com as louças e livros que constituíam o mundo pacífico dos insetos. Folheei o livro que continha vários mapas com legendas riscadinhas.

Jamais pensei em limpar e organizar aquele mundo. Acho que com isso aprendi um pouco a lidar com as inconveniências e com as coisas que incomodam. Cresci sem medo de baratas e com a certeza de que não é possível viver num mundo perfeito. Mesmo assim, o mundo é passível de salvação. Os livros da arca me resgatam lá do fundo dos escombros.

Ainda guardo algumas palavras do antigo poema que encontrei em um dos livros da arca do tesouro: “ao perder-te eu a ti, perdemos tu e eu...”, não me recordo a autoria, mas os versos propiciam profundas reflexões sobre perda, destruição e transformação. Somente agora entre os escombros, encontro o traçado que orienta os habitantes a respeito do local que habitam. Isso não consta de nenhum mapa. É entre proteção e abandono que construo a minha casinha de brinquedo no frio corredor que separa as minhas moradias. Tudo é ganho.

A casa de dormir era menor que a casa de comer e só o quarto funcionava, todo o resto ficava entregue às traças, aranhas, baratas e à minha infinita curiosidade. Eu e todos aqueles não tão amigáveis insetos éramos os habitantes daquele mundo.

Na casa de comer, o principal habitante era o sol, ficava do outro lado do corredor. Era para lá que eu ia todos os dias tomar o café da manhã. A casa de comer era grande, tinha jardim e o fogão, a geladeira e tudo mais funcionavam perfeitamente. Os insetos, se aparecessem por lá, eram realmente considerados intrusos, caçados e sacrificados, coitados! Na casa de comer não havia lugar para abandono. À tarde, era na cozinha empoeirada da casa de dormir que eu me encontrava, explorando os objetos da arca e os livros empoeirados e corroídos. Eu conversava com os insetos. As traças e as aranhas diziam muito sobre aquele mundo que eu virava e revirava. Cada tarde, uma descoberta, não sobre o abandono.

A casa de dormir era noturna até durante o dia, o silêncio morava nela, mesmo quando eu estava explorando a arca, em cima da qual, ao lado da vitrola cor de abóbora, havia um pequeno altar improvisado. De manhã bem cedinho, quando eu ainda estava na cama, ouvia reza sussurrada.

Nas tardes que não ia explorar a arca, eu brincava no jardim da casa de comer ou de casinha no corredor que separava as duas casas. Não sei, ao certo, à qual das duas pertenço. É nos escombros que encontro poesia. Há muitas histórias no abandono e nas coisas sem uso. Assim eu penso observando o bule amarelo de tampa preta que nunca foi usado e divide espaço com os insetos e com os livros na arca. Ali também está o altar. Eu olho para ele curiosa, mas não toco em nada e ele também não me toca. É dentro da arca que está o meu tesouro. São os livros corroídos que contam a minha história e a história que quero contar.

Muitas vezes pensei em como seria ver o bule amarelo sobre a mesa do café da manhã, rodeado por suas xícaras arredondadas e pelo açucareiro bojudo. O que seria das aranhas que moravam lá? Onde encontrariam nova moradia? O café na casa de comer também só era servido em xícaras quando tinha visita especial, mas não no jogo do bule amarelo, ninguém se lembrava dele. Sorte das aranhas.

Tudo desabou e eu nem percebi, quando dei por mim, já estava revirando os destroços na tentativa de encontrar alguma coisa que se salvasse. Eu também faço parte das ruínas, mas o que pode ser salvo não está em parte alguma, muito mais próximo, porém, do que se possa imaginar.


0 Responses

Postar um comentário